O primeiro disco dos Censurados fica como o maior testemunho do punk português do início dos anos 90.
Os Censurados nascem de duas personagens centrais. A primeira, o guitarrista ritmo e vocalista João Ribas, figura maior do punk português. A segunda é o próprio bairro de Alvalade, campo de batalha de Ribas e verdadeiro viveiro, então, dessa contra-cultura musical em Lisboa.
Depois do fim dos Ku de Judas, Ribas não perdeu tempo em procurar montar uma nova banda. E candidatos não faltavam, nos dias passados no Jardim dos Coruchéus (hoje chamado de Jardim João Ribas), nos cafés de Alvalade, no Rock Rendez Vous, no Gingão ou no Tokyo, entre copos, guitarradas e sonhos de palco. Havia toda uma fauna de putos que gravitavam pelos mesmos sítios, iam aos mesmos concertos, aos mesmos bares, tocavam uns com os outros. Entre todos, os punks saltavam à vista, nem que fosse pelas suas roupas. Alvalade, já então um bairro de classe média alta, era onde muitos moravam e onde ainda mais se encontravam.
Da formação clássica dos Censurados, três são daí. Ribas, que vivia na Avenida de Roma em casa dos pais, e dois putos mais novos, Samuel “Palitos”, na bateria, e Fred Valsassina, no baixo. O quarto elemento chegou na figura de Orlando Cohen, guitarrista já com algum nome na praça e ex-Morituri e Peste & Sida.
Ainda antes desta formação estar completa, era normal o dia passar por copos algures e o convite para um “ensaio” na casa de Ribas, ou seja, tudo encafuado no seu quarto, cheio de instrumentos e de colchão encostado contra a parede, para não roubar espaço. Desses tempos iniciais ficam membros que entraram e saíram, entre eles João Pedro Almendra, o “Autista”, com percurso na voz em várias bandas como os Peste & Sida (andou por lá e depois saiu, mas ainda assinou algumas letras de Censurados). No Verão de 1989, Ribas, Orlando, Fred e Samuel tinham cristalizado o alinhamento do que viria a ser os Censurados.
Por estranho que pareça, o grupo já tinha um número considerável de fãs mesmo antes de ter gravado uma nota, fruto também dos concertos que a formação inicial ia dando, em espaços como o RRV ou o Bar Oceano, onde a formação nova se estreou em setembro de 89. Ribas era uma figura já conhecida no underground lisboeta e, como todos se conheciam, era normal toda aquela malta andar junta e ir aos concertos uns dos outros. E a banda que começava a sair do quarto de Ribas gerava um burburinho diferente e prometia algo excitante e importante.
Conforme conta o vocalista no livro “Censurados – Até morrer!”, da autoria de Augusto Figueira e Renato Conteiro, “começámos a ensaiar todos os dias em minha casa e posso dizer que virámos músicos de um dia para o outro”. É neste período do verão/outono de 1989 que nascem músicas como “Tu ó bófia”, “Tá andar de mota” ou “Não”, que viriam a constar do primeiro disco da banda. Outros temas como “Animais”, “Srs. Políticos” ou “É difícil” vinham ainda dos ensaios com os músicos anteriores.
Um elemento por vezes pouco falado é Lola, a manager que se juntou aos Censurados e que fez a diferença para que aquele não fosse só mais um projecto fixe de uns putos malucos. Vinda de trabalhar com os Peste & Sida na promoção do marcante Portem-se bem, foi aí que Lola, na verdade Aurora Pinheiro, conheceu Orlando Cohen, que fez depois a ligação aos Censurados. Na voz de Fred, no mesmo livro: “Nós éramos uns putos, só queríamos era tocar; a Lola não, sabia o que deveríamos fazer e quando o deveríamos fazer. Foi muito importante naquela fase. Se não fosse a Lola, se calhar não tinha havido Censurados”.
É também da sua iniciativa que surge a primeira gravação do grupo, uma maquete, nos estúdios Tcha-Tcha-Tcha, de Ramón Galarza, com produção de Cajó, técnico de som dos Xutos & Pontapés. Este é só mais um de muitos pontos de contacto entre as duas bandas, cujas figuras cimeiras – Ribas e Zé Pedro – eram amigos. Cajó ficaria com as gravações dos Censurados, estes foram convidados pelos Xutos para ir em digressão, a estreia dos punks dar-se-ia na editora dos Xutos e o próprio design da capa do seu primeiro disco ficaria a cargo de Marco Sousa Santos, designer dos Xutos e criador do seu célebre e icónico símbolo “X”.
Já com a maquete gravada e cheios de pica, os Censurados continuam a tocar. No final de um desses concertos, no Rock Rendez Vous, os rapazes foram abordados por João Peste, mentor dos Pop Dell’Arte e criador da editora independente Ama Romanta. A mensagem foi directa: Peste tinha 300 contos (1500 euros, para os mais jovens) a queimar-lhe no bolso e queria que a banda gravasse um maxi-single para a Ama Romanta. A ideia era gravar quatro temas em seis dias de estúdio, mas os rapazes tiveram logo outra ideia: oleados como estavam, seis dias chegavam e sobravam para gravar um álbum inteiro. Nascia aí o álbum de estreia, homónimo, dos Censurados.
A 20 de fevereiro de 1990, entram no Tcha-tcha-tcha e, seis dias depois, saem com o disco gravado e misturado, com Cajó na produção. E depois…nada.
A fama dos Censurados continuava a crescer (é dessa altura o convite dos Xutos para os acompanharem em algumas datas da El Tatu Tour, que promovia Gritos Mudos), os concertos estavam cheios e toda a gente queria ter aquele disco nas mãos. Mas os meses passavam e a Ama Romanta não dava andamento ao lançamento. Nunca ficou totalmente claro o que aconteceu, mas Lola andava atrás de João Peste e este passava semanas sem atender o telefone. A corda foi esticando até parecer claro que a Ama Romanta estava sem dinheiro e o disco não veria, ali, a luz do dia. Lola foi fundamental para resolver o problema. Chegou a interessar a multinacional Polygram para um acordo de distribuição, mas esta editora tinha o calendário cheio e queria adiar o lançamento para o ano seguinte. Para a banda, isso estava fora de questão, porque a expectativa era muito alta e porque andavam já a escrever e a tocar músicas novas. Já estavam era a pensar no disco seguinte!
O novelo acabou por desatar-se, mais uma vez, com a intervenção dos Xutos, nomeadamente Tim e Kalu. Os Xutos andavam a pensar seriamente em lançar uma editora para dar gás a bandas novas e foi assim que se encontrou um acordo com João Peste. A estreia dos Censurados em disco seria pela El Tatu, a editora dos Xutos que arrancou assim, em grande. Estávamos em novembro de 1990.
Censurados, o álbum, foi um sucesso, sobretudo se tivermos em conta que estamos a falar de música alternativa. Em duas semanas, venderam-se duas mil cópias. “O pessoal já andava a perguntar há sete ou oito meses para saber quando é que o disco saía. A expectativa era grande, de modo que depois o álbum começou a vender-se rapidamente”, contou Ribas. Também a imprensa deu larga cobertura ao lançamento do trabalho, rendendo-se ao som duro mas também melódico daquelas músicas, que ficavam na cabeça.
Mais algumas curiosidades sobre este álbum e que ilustram bem algum do amadorismo saudável e do espírito da época. Devido a um erro da Polygram, que era a distribuidora, nas lojas do Porto o disco dos Censurados vinha dentro das capas do disco da altura dos Repórter Estrábico. Também devido a um erro, o tema “Instrumental” não vem no vinil, apesar de vir creditado na contra-capa; o erro foi corrigido de seguida com a edição em cd. E um dos primeiros videoclips da banda, para o single “É Díficil”, foi filmado e editado… pelo Tim.
Quanto ao disco em si, em pouco mais de meia hora e 13 (ou 12…) temas, o grupo deixou gravado aquele que seria o documento que mais fielmente retrata o seu espírito, o seu som, a sua ética musical. A magia de Censurados vem da fé e da ingenuidade que perpassa todo o trabalho, as letras, a entrega, o espírito de luta e inconformismo de quatro miúdos cheios de tusa pela vida e pela música. E, claro, há um inegável sentido melódico que sempre acompanhou as criações de Ribas, que era capaz de fazer canções simples, enérgicas e viciantes. No fundo, um sentido “pop” apuradíssimo, que nos deixou hinos que perduram até hoje.
É esta a casa de singles icónicos como “Animais” ou “É Difícil”, esta última com o inconfundível saxofone de Gui, dos Xutos. Mas também temos o hino de rebelião de “Tu ó bófia”, a crítica social em “Srs. Políticos”, a angst juvenil da excelente abertura de “Angústia”, a visita agressiva à “Guerra colonial” ou o encerramento com uma música que virou manifesto da própria banda, com “Censurados”.
Os Censurados viriam a gravar mais dois discos de originais: o óptimo Confusão, de 1991, bem na senda da estreia; e Sopa, de 1993, já pela EMI e com um som mais polido e menos coeso. Mas é aqui, nesta rodela de 1990, que os rapazes capturaram não apenas todo o seu espírito como também o espírito de um tempo e de uma Lisboa que já não existe: excitante, com uma contra-cultura punk e rock vibrante, negra e aqui e ali perigosa.
Sem qualquer dúvida, um disco essencial e um dos maiores marcos da música eléctrica portuguesa das últimas décadas.