A estreia de Caetano Veloso a solo é o disco mais inspirado do tropicalismo.
O primeiro do Caetano Veloso a solo – o homónimo de ’68 – é a estreia em longa duração do tropicalismo, uma reacção à primeira vaga de MPB e seus excessos moralistas e sectários: passeatas contra a guitarra eléctrica; ataques primários contra o iê-iê-iê da Jovem Guarda (até Jorge Ben foi proscrito por ter participado no programa do Roberto Carlos!); um elitismo estético cagão com nacionalismo cultural a cavalo; e um entendimento quase religioso da sensibilidade bossanovista, quase como se fosse um dogma de fé. Caetano, como todos os grandes da sua geração, também venerava João Gilberto sobre todas as coisas (como está escarrapachado no seu disco anterior, Domingo, assinado a meias com Gal Costa) mas a angústia da influência foi fazendo o seu caminho, resgatando-o da sua sombra pegajosa. Mato-te, querido João, como tu outrora mataste os teus pais; morre para que eu possa também nascer…
De certa forma, a MPB tradicionalista, na sua aversão fanática a qualquer influência anglófila, era mais papista do que o papa, já que João Gilberto não teve qualquer pudor em integrar o americaníssimo cool jazz no seu receituário. Por mais radical que pareça o projecto de Caetano e Gil, há uma curiosa continuidade com os processos do velho guru, pois também eles namoraram com uma estética anglo-saxónica emergente (o rock contracultura pós Sgt Peppers, no seu caso). O pressuposto era o mesmo: uma crença tão inabalável na força da música brasileira que engoliria outras formas em vez de ser ela própria engolida (uma profissão de fé que se cumpriu inteiramente).
O paralelismo para, porém, aqui. A síntese de João Gilberto da música de raiz brasileira com o cool jazz fora discretíssima, soando mais a uma versão estilizada do samba do que a uma tosca salgalhada. Já o tropicalismo não tenta disfarçar as zonas de costura, bem pelo contrário: exibe-as com orgulho, escancarando-as, um statement do valor da mestiçagem, e um indisfarçável prazer em chocar, que 70% do tropicalismo sempre foi feito de provocação, para abanar as águas estagnadas…
O disco abre com “Tropicália”, a canção-manifesto que daria o nome ao movimento, e o exemplar mais bem conseguido da sua estética. Tudo começa com um relato da descoberta do Brasil, com percussões exóticas de fundo, até desembocar em acordes tensos e cosmopolitas, a mesma terra quinhentos anos depois (no fundo, é esse o grande tema do tropicalismo, o próprio Brasil, na sua complexa teia de contradições). Imagens fragmentadas da modernidade vão sendo enunciadas: os aviões, os camiões, os dez mil altifalantes, a construção insana de Brasília, dolorosa e imponente ferida aberta, bela e violentíssima ao mesmo tempo. É uma crítica à modernidade? Ou um elogio? Ambos, que o tropicalismo galga sempre estas dicotomias simplistas, abraça sempre o paradoxo.
À ansiedade vanguardista do verso, o refrão responde com uma alegria burlesca, homenageando tudo o que fora proibido pela polícia do bom gosto, como o “Carmen Miranda-da-da” e o “eu quero é que tudo o mais vá para o inferno” do Roberto Carlos (coitada da sisuda MPB, ainda lhe dá um badagaio).
“Alegria, Alegria”, que já tinha sido um single de sucesso no ano anterior, fora uma espécie de resposta tropicalista ao êxito de Chico Buarque “A Banda” (eleito, com alguma injustiça, como o adversário estético a abater). “Alegria, Alegria” substitui o classicismo buarquiano pela leviana pop art, de câmara trémula na mão, passeando-se pela mundana contemporaneidade: as capas das revistas, as estrelas de cinema, a coca-cola (a primeira vez que uma canção brasileira se refere à água suja do imperialismo americano). A sua entrada com guitarra eléctrica zomba do purismo da nacionalista MPB.
“Superbacana” é fresca como uma aragem, colorida como um desenho animado, saborosa como um cornetto de limão. Orelhuda e sofisticada ao mesmo tempo, é bem reveladora de um dos principais atributos de Caetano, o seu inventivo melodismo.
A dissonante e macabra “Anunciação” versa sobre a paranóia edipiana de um pai, receando que o filho o mate quando nasça, provavelmente uma alegoria da generation gap, com a geração contracultura dos anos 60 matando o conservadorismo da geração anterior. A psicadélica “Eles”, com a cítara da praxe, é outro libelo contra os pais caretas, os que ainda “acreditam no bem e no mal”.
Enfim, um disco que para além das suas grandes canções, tem a importância histórica de ser a primeira grande bandeira do tropicalismo. Uma ode à liberdade estética, à mestiçagem, à modernidade. Um apelo ao derrube dos estéreis paredões que separam a alta da baixa cultura, a cultura nacional da estrangeira, e até o bom gosto do mau gosto. É proibido proibir, pois então…
Mais uma vez, muito obrigado!
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Cadê meu comentário?
Adoro esse álbum do Caetano e, a resenha não deixa por menos,está à altura da obra caetânica.