À boleia do seu novo disco, Alla, Surma recebeu-nos num jardim em Benfica, deslindando o mistério da criação. Um gato vadio apontou tudo…
Altamont: Cresceste numa aldeia perto de Leiria, Vale do Horto, mas a tua estética é muito cosmopolita. As aldeias já não são o que eram?
Surma: Só consigo compor quando estou mesmo lá. Apesar de estar a viver em Lisboa já há muito tempo…
É a calmaria que ajuda?
Sim. O silêncio. Tenho uma cavezinha em casa dos meus pais, fico um bocadinho no meu mundo lá. A minha mãe, às vezes, vem-me chamar, fico mesmo muito obcecada com a composição e a produção. Estou mesmo no meu mundo. São muitas as inspirações vindas de Lisboa, e de viagens que faço, que guardo no meu subconsciente, e então levo para lá para trabalhar tudo isso.
Achas que hoje é habitual crescer-se numa aldeia e ser-se tão aberto ao mundo?
O Vale do Horto sempre foi uma aldeia muito liberal. Sempre foram muito abertos. A minha avó era uma “rebeldezaça”, tanto que em relação às minhas tatuagens ela foi sempre muito na boa com isso…
Vens de uma família liberal…
Muito. Apesar de serem de gerações muito diferentes: o meu pai tem 64 anos, e a minha mãe tem 61, já vim um bocado tarde. Eles também viveram fora, não sei se isso ajudou. Têm uma mentalidade muito aberta e sempre me apoiaram muito.
Aos 17 anos, vens para Lisboa estudar jazz no Hot Clube – voz e contrabaixo. Essa formação jazzística teve depois influência sobre a forma como compões e interpretas?
Sem dúvida. Na importância dada ao improviso, por exemplo. Agora, nos nossos concertos em trio, temos muito espaço de improvisação.
Em 2014, integraste uma banda de indie, os Backwater & the Screaming Fantasy, e um ano depois começaste o teu projecto a solo, com o alter-ego Surma. O que é que te fez passares desse registo colectivo para o individual? Achas que a estrutura de banda não te permitia expressares livremente a tua criatividade?
Sim, foi esse o principal motivo. Nós fomos uma banda desde os nossos 11, 12 anos. Começámos com covers e só depois é que fomos para os originais. Na altura, sentia: não é este o género de música que quero explorar. E pensei para mim: quero fazer um projecto a solo, e tentar explorar aquilo que não explorava na banda.
Em 2016, lanças o teu primeiro single, “Maasai”, que é melancólico na música e na letra. O primeiro álbum, Antwerpen, também é muito soturno…
Fiz uma viagem à Escandinávia e à Bélgica nessa altura. Estava numa fase de exploração interna daquilo que eu queria ser. O Alla é o meu eu a 100%. O Antwerpen estava ainda a explorar o que é que queria: aquela coisa mais banda-sonora, que era aquilo que fazia no momento, e não tanto autobiográfica.
Essa melancolia que exploravas não eras tu?
Era eu mas não era eu na minha vulnerabilidade máxima. Estava ainda a explorar o caminho que queria enquanto Surma. Estava mais retraída.
Em Antwerpen, há um travo islandês, com ressonâncias, por exemplo, de Bjork e Sigur Rós. Sei que tens um grande fascínio pela Islândia. O que te seduz no país e na sua música?
A Bjork sempre foi uma grande “professora” para mim. Sempre me acompanhou desde muito miúda. Sempre adorei, por exemplo, o modo como explora microfones diferentes. Isso é uma coisa que quero fazer enquanto Surma: explorar não só o som do instrumento mas também o material usado para o gravar, e a Bjork inspira-me muito neste aspecto.
Também experimentas microfones diferentes?
Também. É uma coisa que adoro. E sinto-me muito ligado à Bjork. Adoro o facto de não se fechar num só género e numa só forma de compor. Tudo na Islândia para mim é mágico.
A partir de Antwerpen, começas a explorar uma língua inventada, com sílabas sem sentido, a que na brincadeira chamas de “surmês”…
Não foi pensado, de todo. Todas as músicas tinham originalmente letras; no Alla, também. Mas assim que vou para estúdio, e canto as músicas com letras, não sinto nada. Apesar de terem letras que me são muito especiais e muito chegadas, não sinto nada. Diz-me muito mais cantar em fonético. Tem outra ligação emocional.
Comunicas pela emoção pura e não por conceitos…
Exactamente. Prefiro fazer uma coisa natural e genuína para mim do que uma coisa forçada.
No mês passado, lançaste o teu segundo álbum, Alla, que tem essa característica curiosa de ser mais experimental e mais melódico ao mesmo tempo. Um sabor ácido e doce…
Tinha muitas demos já feitas em casa. E fui para estúdio com o Rui. Costumo dizer que ele é o meu “partner in crime”, que eu não faço nada sem ele. Nós temos uma química inexplicável em estúdio. Ele é a Surma também. Nós os dois somos a Surma a 100%, fazemos isto tudo muito os dois. Durante uma semana, o Rui disse: ‘bora tocar, ‘bora ver o que nos sai, ‘bora ver em que mood é que estamos, e acabou por sair essa parafernália de inspirações e de experimentação. Tinha já o grafismo todo pensado na minha cabeça, que é sempre a primeira parte a ser pensada. A imagem vem primeiro. Aliás, já tenho a imagem toda para o terceiro álbum pensada na minha cabeça… Depois, começo a construir todo um mundo inspirado nessas imagens. E a imagem de “Islet” foi determinante para o resto do álbum.
Há uma riqueza rítmica em Alla, onde coexistem vários ritmos independentes, quase como os polirritmos africanos…
A maior influência foi a bateria que estava montada em estúdio. Eu e o Rui olhámos para a bateria e pensámos: nós não somos bateristas, não sabemos tocar bateria, “Islet” foi a primeira música a ser finalizada em estúdio, e essa música tem para aí umas 150 faixas de bateria. E foi a partir daí… O Rui tocava uma tarola, e eu tocava um aro de madeira de um timbalão, ou um prato, e foi o montar de um puzzle dessas polirritmias que acabou por dar nessa inspiração meio africana, e buscar um bocadinho a esses ritmos dos PALOPs. E fiquei logo: o álbum vai ter que seguir isto porque estou a adorar estas ambiências.
Quando ouço Antwerpen, vejo castanhos, pretos, cinzentos. Já no caso de Alla, vislumbro amarelos, laranjas, verdes florescentes…
Sim, daí a capa. Tanto que a capa de Antwerpen é cinzenta e esta vai buscar aos verdes e amarelos. Lá está, a parte da imagem para mim é essencial para tudo o que virá a seguir.
Não falo só do grafismo, a própria música é mais colorida…
Sim. Tanto que eu e o Rui olhámos um para o outro quando acabámos o álbum e ficámos: isto não tem nada a ver com o Antwerpen, o que é que se passou aqui? Lá está, sinto que estou muito mais leve comigo mesma.
Portanto, há uma razão psicológica…
Sim. Comecei a fazer terapia, que é uma coisa que tem sido incrível para mim e que me ajudou muito nesta fase da pandemia. Dúvidas existenciais, tudo e mais alguma coisa. E o Alla foi essa libertação no meu subconsciente.
Nos teus primeiros anos, funcionavas muito naquela lógica de uma banda de uma mulher só, brincando com loops, à Noiserv. Era um processo solitário. Agora, não só te apresentas em palco como um trio, como o processo de gravação em estúdio foi colaborativo, com uma macheia de convidados. Porque é que houve esta mudança de uma certa auto-suficiência para este intenso diálogo criativo?
Foram tantos anos a compor sozinha, muito na minha bolha, e pensei: já é hora de chamar as pessoas para o meu mundo, gostava de partilhar isto com pessoas amigas. A pandemia também ajudou: sou muito bicho do mato mas também senti muita falta das pessoas nesses meses em que parou tudo e ficámos sem ninguém. Nós sozinhos não somos mesmo ninguém.
Tens dito que agora assumes uma certa vulnerabilidade, o que implica uma enorme coragem. Há um lado terapêutico, de esconjurarmos os nossos demónios, deitando-os cá para fora. E também há um lado criativo: ao dançarmos com os nossos esqueletos, temos uma matéria-prima autêntica que desbloqueia coisas…
Eu via a vulnerabilidade como uma palavra má e um sinal de fraqueza para as pessoas que o eram. A terapia ajudou-me a mudar totalmente o interruptor que tinha na cabeça. Ser vulnerável é muito importante para todos nós. É incrível ser vulnerável. Comecei a vê-la como uma palavra de força e persistência. E o Alla é isso mesmo, um grito de libertação para mim, de dançar com esses demónios, e assumir esses mesmos demónios, porque sem eles não seria a pessoa que sou hoje. Eu costumo agradecer aos bullys porque sem eles não seria a mesma pessoa. Eu na altura era uma pessoa que não era. E ao usares uma máscara todos os dias com aquilo que não és, chegas desgastada a casa. Ao assumires a pessoa que és todos os dias é um peso que te sai de cima.
No vídeo do “Islet” jogas com essa questão do rasgar das máscaras…
Sim, logo no primeiro take.
Em Alla, a tua criatividade está cada vez mais solta. Lembra-me o universo das crianças, que são muito imaginativas porque ainda não têm regras, então, vale tudo. Parece-me que estás nessa fase do “vale absolutamente tudo”. Ouves barulhinhos de jogos de computador…
‘Bora usar!…
… ouves um trecho de uma rádio espanhola…
‘Bora!…
… uma espontaneidade quase infantil…
Sem dúvida. Quando vou compor, sinto-me uma criança de 5 anos. ‘Bora! É só fazer as coisas. É isso que quero fazer enquanto Surma: não ir para estúdio já com uma ideia pré-definida, mais a puxar para não sei o quê. Quero ir mesmo para lá com o cérebro vazio. Com as demos já criadas em casa, lógico, que isso é importante também, mas usufruindo de uma total liberdade em estúdio.
Fotografias: Rui Gato