Gravado ainda durante o exílio em França, o segundo disco de José Mário Branco mantém o dedo firmemente no pulso da realidade social do Portugal que o renegou.
Se Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades havia revolucionado a cantiga popular portuguesa com o arrojo dos seus arranjos e a qualidade das suas letras (muitas delas escritas por Sérgio Godinho), Margem de Certa Maneira, lançado em 1972, é o escancarar completo das portas para tudo o que lhe sucedeu. Resgatado a partir de Crónica, um projeto que criou ao lado do escritor Álvaro Guerra e que não conseguiu resistir à censura prévia, José Mário Branco voltou ao Strawberry Studio, onde já tinha gravado o seu disco de estreia, munido de mais e melhores canções e músicos.
Em contraste com o disco anterior, que começa com uma gravação na Gare de Austerlitz e uma introdução musical (já aqui se pode sentir o lado encenador de José Mário Branco), Margem começa de forma muito mais direta, com as guitarras marciais de “Por Terras de França”. Um hino para todos os portugueses que, como Zé Mário, tiveram de se exilar no “Brasil do operário” em busca de uma vida melhor. Segue-se “Engrenagem” uma música sem qualquer paralelo relativamente ao que se fazia na altura. Cromornes (um instrumento de sopro renascentista que se assemelha à pega de um guarda-chuva) tocam a melodia de forma alternada, com a insistência robótica semelhante à maquinaria de uma fábrica. Por cima desta cacofonia, ouve-se talvez um dos slogans mais subversivos e menos subtis da carreira de Zé Mário, quando este canta “Vou meter um pauzinho na engrenagem”.
Este empoderamento é interrompido de forma brusca por “Aqui Dentro de casa” uma canção dilacerante sobre violência doméstica que gerou controvérsia dentro de uma esquerda que pregava justiça e igualdade fora de casa, mas que emulava as estruturas de poder que tentava abolir em casa. Esta mesma temática, sobre o abuso de poder e opressão do próximo, é explorada, com outros contornos, em “Cantiga da Velha Mãe e dos Seus Dois Filhos (Mãe Coragem)”, escrita por Sérgio Godinho e gravada pelo mesmo no seu disco de estreia Os Sobreviventes.
É difícil ouvir esta versão de “A Morte Nunca Existiu” mais despida e tocada de forma mais fria, sem a comparar com o arranjo superior e a entrega mais dramática que aparece em Ser Solidário. A letra, escrita por António Joaquim Lança, é talvez das mais belas que alguma vez saíram da boca de José Mário Branco. A acabar o disco com uma nota de esperança, segue-se “Eh! Companheiro”, também escrita por Sérgio Godinho, uma canção sobre comunidade e o poder desta para ultrapassar as adversidades da vida.
Mesmo sendo um disco muito atento ao seu tempo, as temáticas que este explora reverberam ainda hoje (a violência de género, a imigração, a estratificação de uma sociedade esmagada pelo grande Capital). No entanto, mais do que um bálsamo para tempos conturbados, Margem de Certa Maneira é um álbum profundamente inventivo e arrojado que, juntamente com Cantigas do Maio e Os Sobreviventes pautaram o espírito da canção portuguesa nas vésperas da Revolução de Abril.