Cantigas do Maio não é só o melhor álbum do Zeca. É o nosso melhor disco, ponto. O momento em que o seu bonito projecto – de reinvenção profunda da música tradicional portuguesa – atinge o seu auge poético.
A primavera marcelista foi, na verdade, bastante invernosa quanto à repressão. Que o diga Zeca Afonso em 4 de Outubro de 1971, preso pela polícia política quando queria apanhar o avião para França. Lá acabam por libertá-lo mas quando ruma a Paris para gravar o Cantigas do Maio o seu estado de espírito está bastante esfrangalhado. Mal sabia ele que estava prestes a gravar a sua obra-prima.
Consigo leva Bóris, pequeno génio da Física e guitarrista nas horas vagas, que já tinha dado um ar da sua graça no disco anterior, Traz Outro Amigo Também. Exilados em Paris, à sua espera, estão José Mário Branco e Francisco Fanhais. Sendo Zé Mário o produtor, arregimenta vários músicos franceses para a gravação, enriquecendo a paleta de timbres com uma flauta, um trompete, um baixo eléctrico e uma catrefada de percussões exóticas.
Seguem então para uma quinta perto de Paris, em Hérouville, instalando-se num castelo transformado num dos melhores estúdios de gravação da Europa, os Strawberry Studios (os Pink Floyd e Elton John gravaram lá!). Os discos anteriores do Zeca não tiveram propriamente um produtor, tudo era feito com uma cândida espontaneidade. Ora não é assim que José Mário trabalha, meticuloso no planeamento do mais ínfimo detalhe. Zeca é o seu mestre pelo que sente o peso da responsabilidade, como se tivesse de lapidar diamantes em bruto, confessará mais tarde. Estará à altura do desafio, com uma direcção musical contida mas sofisticada, de um bom gosto exemplar, que marca um antes e um depois na produção de música portuguesa.
O disco abre com a divertida “Senhor Arcanjo” e é hoje icónico o seu falso começo: “ó Zé Mário, não se ouve, pá”. A letra é deliciosamente nonsense, com anjos a caírem no alguidar e doutores a comerem repolhos, surrealista e popular ao mesmo tempo. As congas dão-lhe o remate final: um exótico travo africano.
O tema-título abre com um acordeão dolente, uma levíssima pincelada por cima da viola quase fadista. No refrão o tempo duplica, para dar mais força à catarse emocional dos versos roubados ao cancioneiro popular: “minha mãe quando eu morrer…”. O acordeão, antes suave, é agora nervoso e agitado.
O ritmo sincopado de um adufe dá balanço a “Milho Verde”, um bonito tema popular, com um imaginário singelo e malandro ao mesmo tempo: “à sombra do milho verde namorei uma casada…”. A sua voz pura e trémula, como espigas de trigo a arder, vai-se desdobrando, harmonizando consigo própria.
Menos é mais, pensou José Mário quando chegou a hora de encenar “Cantar Alentejano”, a comovente elegia a Catarina Eufémia. O dedilhado da viola é tão bonito, e o falsete de José Afonso tem tanta dor, que não lhe acrescentou absolutamente nada. Sábia decisão: quando Zeca a grava, ao primeiro take, já na escuridão da noite, José Mário e Francisco Fanhais começam a chorar.
Segue-se a canção-senha “Grândola Vila Morena”, um tema simbolicamente tão poderoso que é fácil esquecermo-nos das suas virtudes puramente estéticas. Numa outra madrugada, Zeca, Fanhais, Zé Mário e Bóris arrastam os cabos de gravação para fora do estúdio, e, abraçados à moda do cante alentejano, arrastam os pés na gravilha, formando assim o batimento cardíaco do hino “Grândola”. Soluções engenhosas as encontradas pelos magos Zeca e Zé Mário.
A flauta de “Maio Maduro Maio” é delicada como uma brisa fresca. Já o baixo a descer as escadas não foi do agrado do Zeca. José Mário manteve-se, porém, firme, assegurando que o mestre iria mudar de opinião. O tempo acabou por lhe dar razão.
“Mulher da Erva” tem uma melodia linda e colorida, um festim de prazer para o nosso córtex auditivo. A letra é de uma comovente empatia, como se assim se conseguisse aliviar um pouco o fardo de erva que a pobre velha carrega.
A profana “Ronda das Mafarricas”, com as suas quatrocentas bruxas e o chibo velho a dançar no adro, tem letra do pintor António Quadros (que já antes emprestara os seus versos para “Cantares do Andarilho” e “Sete Fadas me Fadaram”). O berimbau de boca e as sílabas insólitas inventadas pelo Zeca acentuam a estranheza pagã de todo o imaginário.
Para encerrar um disco perfeito, nada como a perfeita “O Coro da Primavera”. Há uma leveza divertida nos versos, com a contra-melodia da flauta espalhando néctar por onde passa. Já o refrão – “ouvem-se já os tambores…” – é épico e misterioso. O órgão e os coros são quase místicos, irradiando uma estranha luz. A Primavera de Abril quase a chegar…
Já há muito que José Afonso procurava reinventar a música tradicional portuguesa. Em Cantigas do Maio, Zeca atinge o auge poético do seu ambicioso projecto. A encenação sonora é intemporal, foi gravada em ’71 mas poderia ter sido gravada hoje ou no futuro. Todos os discípulos do Zeca, de Sérgio Godinho aos Gaiteiros de Lisboa, de Fausto aos Diabo na Cruz, mais não fizeram do que aproximar-se do ideal de beleza do mestre. A perfeição de Cantigas do Maio é, porém, irrepetível.