Tim Bernardes esgotou o Coliseu dos Recreios. A sala mais nobre e bonita do país soube receber de braços abertos um músico muito cá de casa. A razão é simples: a beleza é um bem que perdura, e estamos muito necessitados de coisas belas.
Tim Bernardes anda em digressão pelo nosso país. Começou em Ílhavo (Casa da Cultura), passou por Ourém (Teatro Municipal), Braga (Theatro Circo), Figueira da Foz (CAE Figueira) e ontem, como bem se soube, esteve em Lisboa, no coração da cidade, na Rua das Portas de Santo Antão, no Coliseu dos nossos Recreios eternos. Hoje, lá mais para a noite, atuará na Casa da Música, na capital do norte do país. Anda atarefado, o jovem paulistano. Percebe-se que é incansável, e que tem trabalhado muito para promover a sua arte. Discos (a solo e com a sua banda O Terno) e múltiplos concertos pelo mundo. Talvez por isso, e pelo génio das suas composições e atuações, o mundo também começa a reparar nele. A digressão norte americana e europeia com os Fleet Foxes terá dado uma preciosa ajuda ao reconhecimento que tem merecido ter. As revistas Uncut e Mojo também já o colocaram nas suas páginas. Enfim, é um caso promissor de sucesso e de justiça.
Com a sala esgotada, Tim Bernardes soube, desde cedo, cativar quem o foi ver e ouvir. Com o repertório que tem, convenhamos, não é difícil. Mérito dele. No entanto, e a somar a isso, a voz, a delicadeza das interpretações, as letras cantadas, tudo combina para o melhor resultado possível. Já o havíamos visto a solo em 2019, no Centro Cultural de Belém, assim como em 2018, na Galeria Zé dos Bois. A propósito desse íntimo concerto de há quatro anos, dissemos o que agora transcrevemos, uma vez que são ainda muito certeiras as palavras de então: “Tudo flutua entre paisagens e tons, sinais de todas as partes, linhas de equadores a norte e a sul de todos os pecados do planeta. A unir o que não tem tamanho, a unir o mundo que se costura num fio de som, a música!, que de tão noturna parece que só tem vontade de brilhar para dentro. Um novelo de luz a enrolar-se em cada um de nós. Lá fora, a poucos passos deste espaço, haverá noite e haverá dia, solidão e companhia por entre versos de muitas e perpétuas canções. Afinal, o que existe fora de nós também pode caber no mais íntimo de nós.”
Ainda hoje parecem perfeitas estas linhas para a definição de Tim Bernardes. Ele é tudo isto, e ainda a dor, o prazer sofrido da memória dos amores que acontecem e que, muitas vezes, acabam por não resultar como se desejaria. Mas Tim Bernardes é também a voz que sabe ser a síntese do peso da música que o sustenta, do peso e do prestígio da música popular brasileira. Nele há muitos clubes de esquina, muitos tropicalismos (ele “organiza o movimento” de forma sábia) e sabe que, como bom filho de São Paulo, “alguma coisa acontece” nos nossos corações, quando o ouvimos. E ontem voltou a acontecer isso mesmo, voltou a revelar-se perante nós algo que é quase indizível, de tão íntimo e de tão gentilmente poderoso. Tim Bernardes envolveu-nos na sua particular e bela deselegância, brindou-nos com os seus supremos desencantos, o seu afinado dom capaz de cruzar tradição e modernidade. Tim engendra em Tim rouxinol, como há muito havia dito Caetano sobre Gil, mas também como fizeram Belchior, Chico, Milton e tantos outros, embora Tim o faça com o jeito de corpo e de voz de certos compositores de agora, que felizmente teimam em afastar-se de alguma preguiça que pulula na nova música popular do seu país.
Sim, é verdade que fomos ver e ouvir Tim Bernardes. Sim, é verdade que esta é a reportagem sobre esse concerto. Mas o que vimos e ouvimos ficou e ficará mais um tempo dentro de nós, remoendo caminhos e sentidos que se revelarão melhor numa qualquer ocasião futura. Hoje ainda, amanhã ou depois. E não, não pensem que ficámos sem palavras para fazermos o relato do concerto. Em vez disso, escolhemos apenas estas ideias porque os sentimentos precedem toda e qualquer manifestação verbal, e ainda porque queremos vaguear mais um pouco na garoa sonora e onírica da longa balada de Tim Bernardes de ontem à noite.
*fotografias em actualização