O curso intensivo de escrever canções do Gimba e as memórias coloniais de Isabela Figueiredo marcaram o primeiro fim de semana do Arquipélago de Escritores em São Miguel onde se prestou homenagem à produção artística açoriana.
Saímos do avião e sentimos imediatamente o nível de humidade a subir. O céu estava repleto de densas nuvens e caía uma chuvinha fraca. Chegávamos aos Açores. Mas não era o já celebre e apetitoso festival Tremor que nos trazia a São Miguel desta vez. Era, sim, o primeiro fim de semana da quinta edição do encontro Arquipélago de Escritores, o festival literário organizado por Nuno Costa Santos e por Sara Leal com a chancela da produtora Alga Viva, cujo palco é Ponta Delgada. Esperavam-nos três dias de um roteiro cuidadosamente desenhado para nos levar a conhecer os lugares mais cool (e mais literários) da cidade capital dos Açores, durante o qual aprendemos sobre a escrita de letras de canções, descobrimos excitantes fanzines e conhecemos escritores, muitos e variados escritores. E não seria o incerto tempo açoriano a demover-nos!
A canção enquanto texto literário
Ainda que o primeiro fim de semana do Arquipélago de Escritores tenha sido mais virado para a literatura, a música não deixou de estar presente, de formas mais ou menos óbvias, em grade parte dos eventos que tiveram lugar em Ponta Delgada entre sexta-feira e domingo. Depois do lançamento, na biblioteca pública e arquivo regional de Ponta Delgada, do novo livro de Vasco Pereira Da Costa, professor e escritor terceirense, ter aberto o festival no dia anterior, sábado começou com a oficina de escrita de letras de canções de Gimba, que decorreu no mesmo local.
O histórico membro fundador da banda Afonsinhos do Condado, que também fez parte dos Irmãos Catita, entre outros variados projetos, criou, em 2004, esta formação, que procura desmistificar a ideia de que o português é uma língua difícil de musicar e de cantar. Em pouco mais de seis horas (divididas entre sábado e domingo), Gimba ministrou um entusiasmado curso intensivo que deixou os participantes a tratar por tu expressões técnicas como fonética, prosódia, métrica, rima interpolada, esquema rítmico ou paralelismo dinâmico.
A língua portuguesa é, de facto, pouco elástica, o que não facilita o seu uso em letras de canções. Pequenos problemas como o alongamento de palavras curtas como “te” ou “que” para encaixar nos tempos impostos pela melodia, ou a acentuação de sílabas que deviam ser átonas, fazem a canção “soar mal”. É por isso que é importante ter em mente considerações como a prosódia, ou seja, a acentuação dinâmica das palavras, ou o estudo, não só das sílabas métricas, como também do esquema rítmico das frases, para garantir que cada sílaba é dita (ou cantada) como deve ser, e que a língua soa familiar e verosímil. Outro ingrediente indispensável na escrita de canções é a repetição, não só de sílabas (formando rimas) mas também de palavras, famílias de palavras ou esquemas de ritmo entre estrofes, de forma a garantir uma certa homogeneidade no “ADN” da canção. Convém ainda não descurar a objetividade e a concisão da composição.
Explorando estes temas de uma forma muito didática, Gimba, que é um excelente comunicador, é capaz de deixar até um leigo musical a sentir-se apto para, se não escrever algo ele próprio, opinar mais criticamente sobre a música que consome. Para além da exposição do palestrante, os participantes foram também convidados a realizar pequenos exercícios de escrita para sistematizar cada secção.
Apesar de o assunto ser, por vezes, densas matérias da área da linguística com complicados nomes Gregos, Gimba faz uso da sua vastíssima experiência para descomplicar os termos herméticos, recorrendo a mnemónicas, canções (nacionais e internacionais) para ilustrar os conceitos aprendidos, e, muitas vezes, à sua própria linguagem (como, por exemplo, a análise dos “tlin tlins” da canção). Gimba defende que o esforço e a preocupação com estas técnicas de escrita de letras valem a pena e que, com algum trabalho, se consegue “resolver” qualquer problema de prosódia ou de métrica, valorizando a canção.
Este exercício de “escuta crítica”, como o próprio lhe chamou, obriga-nos a olhar para as canções de uma forma quase científica, pondo-as debaixo de um microscópio e analisando-lhes os mais ínfimos detalhes, procurando perceber se está tudo no seu devido lugar e permitindo-nos consumir a obra com um novo ponto de vista. As canções, tal como nos ensina a programação do Arquipélago de Escritores, também são textos literários e o seu estudo, ainda que diferente do estudo da literatura a que estamos habituados, tem igual valor e interesse. Gimba, com o seu amor pela música e pela língua portuguesa, veio mostrar-nos isso mesmo.
No maravilhoso mundo das fanzines açorianas
Da biblioteca descemos algumas ruas e fomos dar à La Bamba Record Store, uma loja antiga convertida na única loja de discos dos Açores. Fundada por Luís “Kitas” Banrezes, agente provocador da cultura açoriana que cofundou o festival Tremor e criou a editora Marca Pistola, a La Bamba tem um ambiente delicioso e, claro, está cheia de tentações para melómanos. Mas não era (só) isso que nos trazia ali: conversa sobre “revistas & fanzines de última geração” era o item seguinte do programa.
O painel, moderado por Pedro Santos, da produtora Alga Viva, era composto por vários residentes de São Miguel envolvidos, de uma forma ou de outra, na produção de publicações independentes: o próprio Kitas fundou a Yuzin, uma agenda cultural diferente e de distribuição gratuita, e colabora com a editora Chili com Carne na publicação Conger Comics; Blanca Martín Calero fundou a editora independente Auracária Edições, responsável, estre outras coisas, pela publicação da revista Falta e Gregory Le Lay criou a galeria/oficina BRUI onde se debruça sobre técnicas de impressão e coleciona graphezines.

A conversa começou por se focar na origem do movimento das fanzines, desde a ficção científica aos underground comics, passando pelo DIY do movimento punk, mas rapidamente se transformou num diálogo prolífico entre público e convidados. Entende-se por fanzine, ou “fan magazine”, qualquer edição independente, normalmente feita por amadores, para os fãs de algum nicho da cultura pop. Porém, na partilha de histórias e de vivências relacionadas com diferentes tipos de edições independentes que se gerou, discutiu-se se esta definição será ainda justa numa era digital e o que será, atualmente, considerado (ou não) uma fanzine.

Longe vão os tempos em que o aparecimento da máquina fotocopiadora significou a democratização das edições independentes, que ganharam uma forma rápida e relativamente barata de fazer um grande número de cópias e, assim, chegar a mais gente. Publicações como a Falta, que, sendo edições independentes, são feitas com uma enorme atenção ao design, aplicando técnicas de serigrafia e com acesso a ferramentas digitais avançadas, estão a anos-luz de, por exemplo, as maquetes das fanzines DIY sobre metal trazidas por um elemento do público, fanzines essas que produzia com recortes e fotocópias feitas na escola e que enviava por correio a outros fãs. Outro estádio são ainda, por exemplo, as graphezines que Gregory Le Lay mostrou, pequenos objetos que, segundo o próprio, não servem outro propósito que não o de compilar arte e serem objetos belos que desejamos folhear e colecionar. Sendo que estas “revistas e fanzines de última geração” mantêm o espírito irreverente e punk das fanzines de outrora (“fazemos porque queremos, quando queremos, sobre aquilo que queremos”), será discutível se ainda se pode chamar DIY e amador a objetos com um aspeto tão profissional. Eventualmente a definição de DIY deverá também adaptar-se a uma era em que qualquer pessoa com acesso a um computador pode, em pouco tempo, tornar-se especialista em qualquer assunto.

Talvez pela envolvência da loja de discos, a conversa abordou também a influência das imagens gráficas na música e a importância de certas capas de álbuns famosos. Embora seja normalmente a música a influenciar a escolha da arte do álbum, as imagens podem também ter influência na música. E talvez mais importante que isso, também pode influenciar a escolha de que música consumir, nas já raras ocasiões em que não é possível ouvir o álbum antes de o comprar. Algumas das capas destacadas foram as da editora 4AD, a capa do Unknown Pleasures dos Joy Division, a primeira imagem digital a ser usada num LP, as capas desenhadas por artistas gráficos consagrados como Andy Warhol, ou capas com imagens mais políticas como a do álbum Índia, de Gal Costa, lançado durante a ditadura no Brasil. Em resumo, as capas dos discos foram também elas um campo de experimentação e de inovação no que toca às artes visuais.
Conversas Literárias no Arquipélago de Escritores
Mas não só de publicações alternativas é composto o programa deste encontro e há também espaço para nos debruçarmos sobre a literatura na sua forma mais clássica. Foi isso mesmo que fizemos no restante programa de sábado e no domingo.
Ao fim da tarde, Renato Filipe Cardoso, jornalista, poeta, locutor e também melómano (apresentou o programa Radioactivo no Porto Canal onde divulgava música nova), entrevistou a escritora Isabela Figueiredo a propósito dos seus livros A Gorda e Cadernos de Memórias Coloniais. Perante uma sala bastante composta e muito à luz do seu primeiro livro, o Caderno de Memórias Coloniais, a autora falou aberta e honestamente sobre a questão complexa do colonialismo e admitiu a forte componente autobiográfica desta obra. Não se importando com questões eventualmente mais incómodas, tanto do entrevistador como da assistência, Isabela Figueiredo não pôs paninhos quentes sobre a influência do passado colonial na sua educação e partilhou, sem problemas, a sua opinião sobre como deve o colonialismo ser encarado nos dias de hoje. Falando ainda da pesquisa sobre a revolução de 25 de Abril que fez para o seu novo livro, que publicará brevemente, abordou também questões como as diferenças entre a revolução vivida nas colónias e a revolução vivida em Portugal e a evolução do papel da mulher na sociedade no pós-25 de Abril (onde concluiu que já se percorreu um caminho vastíssimo mas ainda há muito para fazer, e isso vê-se, por exemplo, quando lhe perguntam porque é que escreve cenas de sexo, pergunta essa que ninguém faz a autores masculinos). No fim da interessante conversa houve ainda tempo para alguns autógrafos e partilhas por parte do público.

A fechar o segundo dia do festival tivemos a exibição da peça …Mas Muito Marquesa no Ateneu Comercial de Ponta Delgada. Apesar do texto dramático ser também uma muito nobre forma de literatura, esta peça era a adaptação para teatro, feita pela companhia Terceirense Cães do Mar, do livro Amores da Cadela Pura, o incendiário e feminista livro de memórias da Marquesa de Jácome Correia, figura célebre da alta sociedade Micaelense.

Já no domingo, o programa contou com um passeio pelos lugares literários de Ponta Delgada liderado pelos escritores Maria Das Mercês Pacheco e Pedro Almeida Maia; com uma conversa com o escritor José Carlos Barros, autor do romance As Pessoas Invisíveis e vencedor do Prémio Leya 2021; e com o lançamento do livro de António Melo Sousa, radialista, autor de letras de canções (a canção “Chamateia” tem letra da sua autoria) e um dos fundadores do histórico festival Maré de Agosto, na ilha de Santa Maria.

Este último evento, que fechou o primeiro fim de semana do Arquipélago de Escritores, foi particularmente especial não só por se tratar de uma bela homenagem a uma figura maior da cultura e da divulgação musical açoriana, mas também por se tratar do lançamento da primeira edição da Alga Viva, a produtora de Nuno Costa Santos e Sara Leal, que organiza o festival. Depois de intervenções dos dois editores, foram lidos poemas do livro de António Melo Sousa, que conta com um prefácio do Professor Urbano Bettencourt, académico e nome ilustre da literatura açoriana. No fim, alguns membros do público, colegas radialistas, falaram espontaneamente do homenageado como um mentor.
Findo o último evento, era hora de fazer as malas e zarpar da ilha, sabendo que não demoraremos a regressar a este arquipélago de escritores. Foi belo e proveitoso o fim de semana insular em Ponta Delgada, a falar e a pensar a literatura em todas as suas formas. No próximo fim de semana, haverá mais conversas sobre as várias artes e os entusiasmantes concertos de The Wants e Manuel Fúria, desta vez em Angra do Heroísmo, na Terceira. Até lá, fica a revisão da matéria dada.