Aproveitando o pretexto do novo disco, Agarrado ao Mundo, ter saído há pouco, os Lobo Mau saíram finalmente da toca do confinamento e brindaram-nos com um bonito concerto no Village Underground, em Lisboa.
Se os Lobo Mau são três – David Jacinto, Lília Esteves e Gonçalo Ferreira, as tais “duas vozes e uma guitarra” com que se anunciam, e todos com um passado comum nos defuntos TV Rural -, de quando em vez gostam de convidar lobos de outras matilhas, justamente o que sucedeu na passada sexta-feira, com Jorge Machado assumindo as percussões e as electrónicas.
Para que nenhum dos seus três discos ficasse abespinhado – o álbum de estreia Na Casa Dele (2020), o EP Vinha a Cantar (2021) e o novo longa-duração Agarrado ao Mundo (2022) -, o alinhamento não deixou nenhum álbum de fora.
Tendo os Lobo Mau uma estética suave e intimista, avessa aos decibéis musculados do rock’n’roll – ao contrário dos TV Rural e dos Noves Fora Nada, onde Jacinto é vocalista -, também no palco se apresentaram lânguidos, refastelados nas suas cadeiras, como se estivéssemos todos “na casa dele”, os sapatos à porta, juntos ao guarda-chuva a pingar…
David Jacinto e Lília Esteves não cantaram só. Cavaquinhos, acordeões, harmónicas, sopros bizarros imitando pássaros, o diabo a sete!, foram algumas das ferramentas usadas para deitar a sua criatividade cá para fora. Mas foi cantando que mais se sentiram em casa. O jogo das duas vozes – naturalmente, muito contrastantes – foi um dos pratos fortes da noite, cheio de nuances e subtilezas, como Jacinto afastando-se do microfone em “Uivo” – criando um efeito de distância – ou a sobreposição lindíssima de duas melodias em “Corrente de Ar”.
Pena é que as condições técnicas fossem beras, com o microfone de Lília a estrilhar feedback por todo o lado e alguma dificuldade em se perceber as cuidadas palavras cantadas por ambos (também a percussão electrónica de Jorge Machado padeceu da mesma maleita, soando a uma bateria de brincar comprada no toys’r’us). Quando a música é tão delicada e exigente, e tão inegociavelmente de autor – ainda para mais, longe, muitas vezes, do conforto do formato-canção -, a qualidade do som torna-se ainda mais importante.
Apesar de tudo, ouvimos a guitarra de Gonçalo Ferreira com mais clareza: muito percussiva, cheia de inquietação rítmica, e aquele reverb – meio surf rock, meio western spaguetti – que não está muito longe do universo dos Dead Combo. Guitarra, não, guitarras, às vezes eléctrica, com um amor indisfarçável pelo blues – “É Delicado”, “Estendais”, “Admirável Mundo Morto”, “Blues da Sopeira” -, outras, acústica, amante da folk psicadélica dos anos 70, quase tribal, à Led Zeppelin III e afins (“Estrada Sinuosa”, “Aves Raras”, “A Geada”, “Rua Deserta”).
Mas este ibérico lobo mau não se alimenta só de uma dieta anglo-saxónica, longe disso. O refrão de “Aos Olhos da Aldeia” transbordou de portugalidade folclórica, com bombos e tudo, um quase vira do Minho na quase Lisboa de Alcântara. Da mesma maneira, uma das músicas mais bonitas da noite, “A Grande Proeza”, tinha qualquer coisa de Jorge Palma, certamente uma das referências desta simpática alcateia.
Ora “A Grande Proeza” é uma excepção a este respeito. Em todos os outros temas, o que sentimos foi justamente o oposto, uma originalidade intransigente, avessa a fórmulas e pastiches, impossível de encaixar em moldes pré-feitos do passado. Os constrangimentos técnicos podem ter condicionado uma fruição total da experiência Lobo Mau, mas uma coisa ninguém nos tirou: o privilégio de saborear uma estética singular, que é só deles e de mais ninguém. Sentimos o travo a novo na boca. Haverá aroma mais saboroso?
Alinhamento
Uivo
É Delicado
Aos Olhos da Aldeia
3 Segundos de Nada
Admirável Mundo Morto
Estrada Sinuosa
Aves Raras
A Grande Proeza
A Geada
Rua Deserta
Nuvem Negra
Blues da Sopeira
O Monstro
A Árvore
Corrente de Ar
Fotos: Rui Gato