Um concerto comemorativo de 50 anos de carreira é sempre um acontecimento. Mais ainda quando se dá a circunstância de o concerto acontecer no dia em que Milton Nascimento celebra o seu septagésimo primeiro aniversário. Tudo isto em Lisboa, na nossa sala maior, o eterno Coliseu dos Recreios. É muita coisa boa para uma noite só, convenhamos.
Na verdade, começar este texto pressupõe um recuo ao tempo da minha juventude. São tantas e tantas as boas lembranças sonoras que tenho dos disco do Milton (desculpem-me a forma tão pessoal de tratamento, como se a pessoa referida fosse muito lá de casa, mas não poderia ser de outro jeito) que é impossível não me socorrer delas para este enquadramento inicial. O Milton é, a par do mano Caetano, a grande referência da música popular brasileira (MPB) de toda a minha vida, e por isso talvez se perceba melhor agora esta estreita proximidade de ternura e admiração pela figura que o grande Bituca representa. Ele será sempre eterno! E foi assim que tudo começou, cruzando-se tempos (o dele e o meu) no minuto em que os primeiros sons se fizeram ouvir no Coliseu, e a sua voz surgiu poderosa como havia também surgido quando ouvi pela primeira vez “Nos Bailes da Vida”, há mais de 30 anos. Curiosamente, essa canção não surgiu no alinhamento do show. Foi o Milton a brincar comigo, só pode.
O concerto abriu com a clássica “Bola de Meia, Bola de Gude” e avançou logo para “Credo”. Os motores ainda aqueciam, e o público não dava mostras de grande entusiasmo perante uma banda que cedo se percebeu ser (obviamente) competente, e um Milton quase estático no palco. Até que chegou “Cais”, primeira de muitas canções verdadeiramente emblemáticas e eternas que Milton trouxe para nos maravilhar, e desde logo toda a sala se rendeu ao supremo encanto daqueles versos, daquela melodia que entoa, sofridamente, “Para quem quer se soltar / Invento o cais / Invento mais que a solidão me dá / Invento lua nova a clarear / Invento o amor / E sei a dor de encontrar”. O interlúdio de piano a meio da canção foi mesmo uma coisa de outra galáxia! Fosse tudo assim tão divino na vida como por vezes é na música, e o mundo seria bem melhor e mais humano… “Vera Cruz” foi a canção seguinte do alinhamento, até que os primeiros versos de “Clube da Esquina Nº2” apareceram mais transparentes do que nunca, e passaram pela minha cabeça tempos antigos, tempos tão moços como os da canção: “Porque se chamava moço / Também se chamava estrada / Viagem de ventania / Nem se lembra se olhou pra trás / Ao primeiro passo, asso, asso, asso, asso..” na voz de Milton que gritava e gesticulava enfaticamente. Grande momento! “Cravo e Canela”, a canção seguinte, e ainda “Nuvem Cigana” sublinharam a ideia de um concerto muito centrado no icónico álbum Clube da Esquina, de 1972. Este emblemático trabalho de Milton Nascimento e Lô Borges é um marco decisivo na carreira do aniversariante da noite, e um dos melhores discos de sempre da MPB. Depois, na sua permanente pose quase estática – ora com guitarra, ora sem ela – Milton cantou “Amor e Paixão”, tema que aparece em Brazilian Romance, disco de Sarah Vaughan, último dos muitos que a diva norte americana gravou. Entretanto, Milton informou o público que essa mesma canção aparecerá no seu próximo disco, já em estado avançado de gravação. “Lília”, poderosa homenagem instrumental à mãe (não biológica) de Milton, foi outro bonito momento, até que os milhares presentes na sala resolveram cantar os parabéns ao menino mineiro de 71 anos. Foi bonito, quase comovente. “Fé Cega, Faca Amolada” antecedeu o melhor momento da noite. António Zambujo entrou em palco, e os minutos que se seguiram foram arrepiantemente indescritíveis: “Ponta de Areia”, canção maior e mais que perfeita, foi interpretada por ambos de forma celestial. Que pena não ter ficado registada para a eternidade! Zambujo, nome já incontornável de um estilo que não é fado, nem outra qualquer coisa bem definida, cantou “Travessia” bem ao seu jeito, e brilhou alto, mais uma vez. Seguiu-se, a sós no palco, “Lambreta”, até que uma troca de palavras engraçadas para que voltasse a cantar (Milton pediu, e “um pedido do mestre não se pode recusar” – disse Zambujo) resultou em “Nem às Paredes Confesso”, de Max. Depois desse momento, foi a vez de Milton acrescentar: “Eu sabia que ele ia cantar”, manifestamente satisfeito. Outro enorme momento aconteceu com “Canção da América”, com longa e bonita história explicativa desse tema, que primeiramente teve letra em inglês (“Unencounter”), e só mais tarde lhe foi colocada letra portuguesa, por Fernando Brant, antigo e muito presente parceiro de Milton e Lô Borges, entre tantos outros. Milton perguntou se o público conhecia a canção, e perante a óbvia resposta, Milton pediu, refastelado numa cadeira, que a cantassem para ele, o que acabou por acontecer. “Canção da América” foi cantada integralmente, sem que Milton cantasse um único verso. Bonito e comovente, uma vez mais. Estava chegado o momento do segundo convidado especial da noite. Pedrinho, nome carinhosamente atribuído a Pedro Bernardo, ator, compositor e quarto filho de Milton (leia-se afilhado) cantou “Circo Marimbondo” com a participação do pai, seguindo-se ainda um outra canção, até que Milton disse o seguinte: “Tinha quatro rapazes de quem a gente gostava, mas eles não sabiam que a gente existia, e a gente fez essa canção pra eles”. Estava introduzida a belíssima “Para Lennon e McCartney”. Depois veio “O Sol”, canção de Jota Quest que foi, pelo menos para mim, uma agradável surpresa. Milton cantando Jota Quest foi muito bom, sem dúvida, sobretudo por ser totalmente inesperado: “pra onde tenha sol é pra lá que eu vou”, espécie de refrão da canção, foi cantado por todas as vozes da sala, vezes sem conta, e em boa comunhão de sentimentos.
Até que chegou Carminho, a terceira convidada do show. A primeira canção partilhada foi “As Pedras da Minha Rua”, seguindo-se “A Rosinha dos Limões”, com história explicativa sobre o que a canção representa para Milton. Muito bonito, sem dúvida. A imensa “Caçador de Mim” aconteceu cantada por ambos, e o mesmo se deu com “Encontros e Despedidas”, num momento em que já se adivinhava o fim de Uma Travessia, título do concerto comemorativo dos 50 anos de carreira do jovem de Minas, embora nascido no Rio de Janeiro. Carminho ainda ficou para o encerramento, e cantou com o mestre a eterna “Nada Será Como Antes”. O concerto, antes do encore final, terminava em grande, em plena comunhão entre quem estava no palco e quem permanecia na sala, quase duas horas e meia depois de ter começado.
Já com todos os músicos e convidados presentes em palco, as duas canções finais fizeram-se ouvir em tom de festa, e as escolhidas foram “Raça” e “Maria, Maria”. Artistas e público pareciam abraçados por uma mesma graça, por um mesmo encanto que só aquele velho homem sabe proporcionar. Eu já o vi e ouvi várias vezes, e sei do que falo. Milton Nascimento é um fenómeno, e como coisa pouco explicável que é, podemos dizer mesmo assim, que Milton Nascimento é MPB, é Jazz, e é mais qualquer coisa que só ele deverá saber. Na verdade, eu também sei o que é, mas sei-o de um modo tão íntimo, pessoal e indizível, que não poderei dizê-lo aqui. É que as emoções são anteriores às palavras, e isso faz toda a diferença. Não vos parece?
(Fotos: Diogo Lopes)