Zé Ibarra deu à luz uma pequena obra-prima no vão de escada do local onde viveu nos sofridos anos da pandemia. Desses instantes íntimos surgiu Marquês, 256, um disco que só tem beleza e prazer para nos dar.
Este texto terá, assim esperamos, algumas serventias. Servirá, em primeiríssima instância, como forma de dar a mão à palmatória por ser tardio. Muito tardio. Depois, e para não sermos exaustivos na enumeração dos seus eventuais préstimos, como maneira de promover a beleza sonora e lírica do que nele vem. Em pouco menos de meia hora, Marquês, 256 revela-se pleno de significado e da maior importância no turbilhão da nova música popular brasileira, que tem estado submersa por uma hecatombe de nomes e projetos que optam pelo fácil, pela cópia, pelo registo primário, como que desconsiderando, sem qualquer pejo ou pudor, o ouvinte de ouvido mais apurado e sensível. Ainda haverá esperança no futuro, ou melhor dizendo, num futuro que faça honrar a excelência do seu próprio passado? Como sempre, o que aqui se escreve estará sujeito a contraditório, mas isso não nos impede que defendamos convictamente as nossas certezas sobre o que escutamos, bem como o que lemos nas letras dos temas que ouvimos. Onde, num espaço como o da música popular brasileira, pensamos haver bastante mediocridade, também é certo que nele encontramos excelência e elegância. Zé Ibarra cola-se de forma perfeita a estes últimos encómios.
Marquês, 256 saiu para o mundo há quase um ano, em maio de 2023. O que lhe fizemos foi imperdoável, votando-o a um quase esquecimento, talvez por via do Desejo de uma certa Bala disparada pelo próprio e por mais três outros compinchas. Talvez, mas nunca é tarde para se recuperar o tempo perdido, e nisso concordamos com Proust. Por isso, o melhor é que avancemos sem demoras.
São apenas oito, os temas de Marquês, 256, título-morada de Zé Ibarra, no Rio de Janeiro, local onde esteve confinado nos tempos em que a pandemia recente nos obrigou a múltiplas clausuras. Ao que consta, Zé Ibarra cantava para os vizinhos nos vãos de escada desse local, jurando a si próprio que haveria de gravar um álbum nesse mesmo (inusitado) espaço. Foi exatamente isso que fez, apenas com a sua voz, violão e piano. Ficou ótimo, ficou minimalista, encantatório. Dos oito temas, vários são alheios à sua criação, embora os torne muito seus na forma como os interpreta. Os maiores destaques vão para “Vou-me Embora” (Paulo Diniz e Roberto José), “Dó a Dó” (Dora Morelenbaum e Tom Veloso) e “San Vicente”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. A bem da verdade, é importante que se diga que “San Vicente” é das mais belas canções de sempre da MPB, e que pela voz de Zé Ibarra não perde um instante da sua tão particular majestade. Os falsetes lembram os de Milton Nascimento em Clube da Esquina, e isso só traz vantagens à interpretação do artista. Que extraordinário momento para terminar Marquês, 256! Mas há mais, pois então. O clássico “Olho d’Água”, de Waly Salomão e Caetano Veloso, também se mostra lindo como nunca, mesmo que originalmente cantado por Bethânia, o que não é coisa de somenos. O que na voz da rainha é fortaleza e apuro, na de Ibarra é fragilidade pura. “Como Eu Queria Voltar” (Lucas Nunes, Tom Veloso e Zé Ibarra) também arrepia a alma, pelo que nem sabemos bem como dizer o que faz ao corpo. Ouçam as outras três canções que não mencionámos e retirem as vossas próprias conclusões. Apostamos que serão equivalentes às que expressamos aqui.
É indiscutível que um pequeno núcleo de novos nomes da música do país irmão parecem interessados em trilhar caminhos que lembram, mesmo que à distância e não exatamente nos mesmos moldes, alguns dos monstros sagrados da música que no Brasil se fez nos idos anos 70, 80 e 90. Como não ouvir ecos de Caetano, de Milton, de Gil em Ibarra, mas também em Tim Bernardes ou Bruno Berle, por exemplo. Ouvir Zé Ibarra e o seu Marquês, 256 é obrigatório e viciante. E é tão bom rendermo-nos a vícios que não ferem nem matam, antes nos encaminham para os prazeres das coisas boas!