Meu Coco é o coco de Caetano Veloso, mas também de todas as cabeças que o acolhem há anos, há muitos anos e que ontem se despediram do mestre maior da música popular brasileira. Foi bonito e comovente, foi “celeste celestial”.
“Coração de eterno flerte, adoro ver-te”
Foi, muito provavelmente, a última vez que vi Caetano Veloso ao vivo em Portugal. A idade tem destas coisas, e o nosso mano Caetano já referiu a intenção de deixar de fazer digressões pelo mundo, e passar a realizar apenas apresentações na sua Bahia natal. Por tudo isto, assistir a Meu Coco, ontem, acabou por ser um misto de alegria e de tristeza, já com notórios e nostálgicos contornos de despedida. Entre mim e o mestre haverá, a partir de agora, uma imensa e eterna saudade transatlântica.
Gilberto Gil, amigo, parceiro e irmão de Caetano de toda uma vida, cantou um dia “meu caminho pelo mundo eu mesmo traço” e a perspetiva mais do que certa de que os nossos caminhos (o meu e o de Caetano) nunca mais se encontrarem, fez-me doer o corpo e a alma até ao início do concerto. O sentimento de perda foi maior do que imaginava. Caetano é muito cá de casa, uma voz íntima que me deu tudo o que precisei para perceber a sua incomensurável grandeza. E a dos outros também, a de todos os astros da MPB. É com esse vazio que ficarei. Não mais ver Caetano Veloso ao vivo parece-me, ainda agora, algo irreal. Impossível. Inimaginável.
A memória nem sempre nos serve de forma totalmente límpida, mas foi nos anos oitenta que o vi, neste mesmo Coliseu dos Recreios, a atuar pela primeira vez. Ontem, Caetano fez referência a um concerto (o de apresentação do seu álbum Velô) em que cantou dois fados, sabendo apenas nessa altura que Amália Rodrigues estava na plateia a assistir ao espetáculo. Eu estive lá e ficará para sempre essa recordação, tanto para mim, como para Caetano Veloso. Algo de semelhante aconteceu ontem, na terceira data de Lisboa, quando com Carminho voltou a cantar dois fados, “Você-Você” e o antigo “Os Argonautas”. Desde essa distante data (1985) até ontem, a sua presença passou-me pelos olhos, narinas e orelhas mais de duas dezenas e meia de vezes. Foi longo e frutuoso, esse caminho de palcos e plateias. Muitas e boas paragens por palcos lusos, tenho-as gravadas na mente e no coração. Por isso, e como diz a canção, “Viva aquele que se presta a esta ocupação / Salve o compositor popular” Caetano Emanuel Viana Teles Veloso!
O concerto começou com quinze minutos de atraso, o que é, na verdade, muito pouco, quase insignificante, convenhamos, uma vez que recuámos muito no tempo, até à terceira faixa do primeiro longa duração de Caetano e Gal, intitulado Domingo, de 1967. O tema inicial do espectáculo foi o velhinho “Avarandado”, pulando-se imediatamente, quase sem pausa, para os recentes “Meu Coco” e “Anjos Tronchos”, ambas frias e tensas, inquietantes, embora cada uma à sua maneira. Mas o primeiro bruá geral de contentamento deu-se com “Sampa”, piscadela de olho do baiano à cidade de São Paulo e à sua eterna musa Rita Lee. “Não vou Deixar” e “Muito Romântico” soaram límpidas e belas. Alguns dos arranjos dos temas mais antigos foram surpreendentes, como bem se notou em “O Leãozinho” (com inusitados pozinhos de reggae) e em “Menino do Rio”, isto apenas para dar dois dos exemplos mais gritantes. Nova viagem cronológica, desta vez ao passado londrino de Transa, com a maravilhosa e sempre moderna “You Don’t Know Me”, seguida de “Trilhos Urbanos”, a conhecida canção “onde o Imperador fez xixi”. Voltou-se ao recente Meu Coco e à mais bela e surpreendente canção desse disco, a extra-terrestre e exótica “Ciclâmen do Líbano”. Soberba interpretação da banda e do próprio Caetano. Seguiram-se “Cajuína”, em parte entoada pelo público, a fresca e dançante “Reconvexo” (os passinhos de samba de Caetano fazem sempre furor), e “Itapuã”, uma das mais belas composições de Circuladô (1991). “Pulsar” teve direito a surpreendentes jogos de luzes e de posturas corporais de Caetano, dando ainda corpo e relevo a essa mini-canção de Velô e ao poema de Augusto de Campos, “o maior poeta vivo da língua portuguesa, na opinião do baiano de Santo Amaro da Purificação.
O concerto encaminhava-se para o fim, quando a mítica “Baby” foi tocada, misturando-se, a espaços, com “Diana”, a antiga e conhecida canção de Paul Anka, que Caetano havia gravado no seu disco A Foreign Sound (2004). No final, o grito “Gal Costa para sempre!”. O tema “A Bossa Nova é Foda” talvez tenha sido o único que não ganhou muito com os arranjos novos, até que “Sem Samba Não Dá” deu início à festa final, com o Coliseu a dançar e a cantar em pleno delírio. De rajada, após o samba de Meu Coco, “Lua de São Jorge”. “a sempre mágica “Odara” (tão disco sound tropicalista) e “A Luz de Tieta”, estas duas últimas a preencherem o encore. O fim estava, fatalmente, a alguns segundos de distância.
Regressei a casa com uma tranquilidade inesperada. Satisfeito com o que vi e ouvi, satisfeito com o facto de ter escolhido, desde muito novo, Caetano Veloso como o deus das canções da minha vida. E como em Caetano tudo é música e poesia, socorro-me do referido poema visual de Augusto de Campos para uma derradeira nota, uma espécie de epígrafe que se junta (e completa, num sentido muito pessoal, por isso não se preocupe se não o entender) à citação de “Menino do Rio” que abre este texto. É simples, e diz apenas isto – para o meu mano Caetano, agora e para todo o sempre:
um “abraço de anos-luz”.
Fotografias cedidas por Daryan Dornelles