Ontem fizemos parte da larga e universal família de Gilberto Gil. Parecia que estávamos à lareira com o velho mestre baiano. Mas em vez desse fogo aceso que queima e aquece, acendeu-se a chama fraterna no coração de todos nós.
Tem sido um ano de despedidas, mesmo que nem sempre anunciadas, como parece ser este o caso. A idade traz vontades mais contidas, debilidades que atrapalham, ponderações que ditam correr menos riscos e que convidam a gozar o prazer tranquilo dos dias futuros sem palcos europeus e mundiais de permeio. Tudo isto para dizer que talvez tenha sido a última vez que vimos e ouvimos Gilberto Gil em terras lusas. Ainda há dias, Caetano Veloso também nos acenou um “até sempre” que nos custou horrores. Aplausos e lágrimas misturadas com canções de toda uma vida. Com Chico Buarque passou-se o mesmo, com Milton Nascimento também. Ontem, no mesmo palco onde se exibiu o seu mano Caetano, foi a vez de Gilberto Gil nos deixar com “aquele abraço” que bem conhecemos. Fomos prestar-lhe vassalagem, naturalmente, na esperança trémula e quase extinta que não fosse a derradeira. A nossa alma guardou-lhe o cheiro “a talco, como bumbum de bebê”, assim como a sua “aura clara”. Para sempre, que é como merece o baiano filho de Xangô.
Gilberto Gil chegou no velhinho “Expresso 2222” e foi tremendo o corropio na sala, cantando-se o conhecido refrão por todo o Coliseu. Logo a seguir, a surpresa de “Viramundo”, tema que poucas vezes é tocado ao vivo pelo mestre Gil. Sentado numa confortável cadeira, violão ao jeito das mãos certeiras e bem cadenciadas, o samba, canção de toda uma nação, ouviu-se numa série curta de temas históricos como o samba-rock de Jackson do Pandeiro – “Chiclete com Banana” – e ainda o samba-baião “Upa, Neguinha”, eternizado pela eterna Pimentinha Elis Regina. E por falar em Elis, em surpresas e temas bem antigos, que bom foi ouvir “Ladeira da Preguiça”. Tudo foi “um luxo só”, lembrando o famoso samba de Ary Barroso, o quarto em sequência morna, mas ritmada. “João Sabino” também esteve presente, esse filho pouco ortodoxo do “espírito santo”. Só faltava mesmo a Garota brasileira mais conhecida em todo o mundo, essa mesmo, a de Ipanema. Chegou em boa hora, como sempre acontece quando chega e impõe a sua magia de décadas. Não envelheceu, e não se apresentou da forma costumeira. Trouxe consigo novas roupagens. A eternidade, na verdade, faz bem à pele das canções que a merecem. É um facto inquestionável. “Garota de Ipanema” em versão samba-reggae, quase toda cantada por Flor Gil, a neta afinadíssima que tem acompanhado em palco o avô nos últimos anos. Depois da neta cantar “Moon River”, o neto Bento tocou “Tempo Rei” no violão, acompanhando o canto do avô. A cumplicidade desdobrando-se em candura e graça…
Depois, e finalmente, Gilberto Gil deixou a cadeira para cantar o hino “No Woman, No Cry”, na versão que fez na nossa língua em tempos passados. Os “retratos do mal em si” parecem ainda tão presentes, se pensarmos nos dias que passam. A banda entrou e o swing jamaicano tomou conta do recinto. A coisa ia mudar. Abriram-se as portas e as janelas do som sem que, no entanto, houvesse uma forte corrente de ar que tudo agitasse de maneira repentina. A verdadeira animação iria chegar um pouco mais tarde, para a longa a reta final do concerto. A seguir, foi a vez de “Sonho Molhado”, tema do início dos anos 80, do mítico álbum A Gente Precisa Ver o Luar. “Esotérico”, em homenagem à eterna doce bárbara Gal Costa, fez com que o mistério pintasse de novo por aí, pelo nosso imaginário musical. “Cérebro Eletrónico”, tema feito quando Gil havia sido preso no Brasil, foi também uma boa surpresa no alinhamento de ontem. A atualidade dessa letra é inacreditável. Vão ouvi-la, se duvidam, e verão que temos razão. Até que o francês de “Touche Pas à Mon Pote”, canção anti-racista por excelência, voltou a animar um pouco mais a sala dos nossos recreios lisboetas. “Back In Bahia”, um dos melhores momentos da noite, roqueira como poucas canções de Gilberto Gil, trouxe memórias de tempos festivos, nostálgicos e bons! Gilberto Jimi Hendrix Gil! Que bom! E que bom também a incrível, a maravilhosa “Andar Com Fé”! Mas foi no encore duplo que a festa ganhou forma definitiva. “Aquele Abraço” foi-nos dado de maneira sentida e carinhosa, e a derradeira canção fez com que toda a sala assumisse a forma das meninas baianas que Gil nos deu a conhecer no seu Realce, de finais dos anos 70. “Toda Menina Baiana” fomos todos nós por alguns minutos de sonho.
Tudo passou depressa “como tudo tem de passar”, como diz a canção. O concerto havia chegado ao fim. Saravá, Gilberto Gil! Saravá!
Nota final: a primeira parte do concerto da noite de ontem foi entregue a Bruno Capinan, cantor e compositor de apelido importante, sobrinho do grande poeta de “Ponteio” e de “Soy Loco Por Ti América”, canções icónicas da MPB de outros tempos. Apenas acompanhado à guitarra, o que lhe vimos não foi suficiente para grandes conclusões, uma vez que não chegámos a tempo de o ouvir por inteiro, digamos assim. Voz intimista, canções (quatro apenas) a condizer. Ficará para uma próxima oportunidade.
Fotografias: Hugo Amaral