Calou-se o José Mário Branco, aos 77 anos, depois de uma vida que foi só inquietação, inquietação.
“Artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro”, foi um dos maiores nomes da canção popular portuguesa, sendo responsável por alguns dos mais importantes discos da segunda metade do século XX e dos primeiros anos do XXI.
Discípulo de Fernando Lopes-Graça e de Michel Giacometti, um dos principais etnomusicólogos da música popular portuguesa, foi um amante da tradição musical portuguesa, bem como da poesia lusa. O seu primeiro EP versava sobre seis poemas medievais, incluindo poema de D. Dinis.
Em 1968 compõe uma das mais bonitas canções de resistência à Guerra do Ultramar – o maior flagelo pelo qual o Estado Novo foi responsável –, chamada “Ronda do Soldadinho”, num estilo de cantiga de roda quase infantil, expondo desta forma o ridículo da situação que obrigou milhares de jovens portugueses a irem combater para uma guerra sem razão. A letra é auto-biográfica e conta como o jovem José Mário optou por ir para França “P’ra não ir / Matar na guerra”.
As canções de intervenção eram onde José Mário Branco expunha a sua inquietação e, como o próprio dizia, toda a canção é de intervenção, mesmo que não tão vincadamente como as suas.
Mil novecentos e setenta e um foi um ano de particular importância para José Mário Branco. Edita o seu LP de estreia, um disco denso, combativo e de grande complexidade musical. Mudam-se Os Tempos, Mudam-se as Vontades foi editado em Paris e, claro, não teve edição em Portugal, chegando ao país por vias clandestinas. Seria uma vergonha para o regime permitir que os versos do poeta maior da nação fossem usados para criticar a realidade portuguesa da época.
Esse apego aos grandes poetas da língua era uma das principais marcas da música de José Mário Branco. Cantou Camões, Natália Correia e Alexandre O’Neill, tudo isto no primeiro registo em disco, tendo também prestado homenagens a Antero de Quental.
Mas relativamente ainda ao ano de 1971: saem dois dos mais importantes discos da música portuguesa e todos eles com dedo de José Mário Branco. Falamos do excepcional Cantigas do Maio, esse disco perfeito de Zeca Afonso, em que ouvimos pela primeira vez a excelência da produção de José Mário Branco e do seu disco de estreia. Nesse mesmo ano Sobreviventes, o melhor disco da carreira de Sérgio Godinho, com extensa colaboração de José Mário, companheiro de luta dos anos de exílio em Paris.
Oiçamos Cantigas do Maio e pasmemo-nos com a visão musical de José Mário Branco. A primeira voz que ouvimos em “Senhor Arcanjo” é a do director musical, José Mário Branco, a fazer a contagem, qual imperador no seu trono. Depois entram as precursões e a guitarra acústica. O baixo, uma interrupção e lança-se o disco que mudaria para sempre a forma de fazer música (de qualidade) em Portugal. A voz clara de Zeca, as letras surrealistas, os instrumentos de sopro e os ecos sem se sobreporem ao músico central do disco. Não há uma gordura a mais, tudo é essencial, tudo é perfeito.
Esta técnica seria a mesma responsável por dar ao mundo o melhor de Camané. Em 1994 o jovem fadista queria voltar aos discos e pediu a David Ferreira, da EMI, que convidasse José Mário para lhe produzir o disco. Este acedeu e, juntamente com Manuela de Freitas (esse anjo que reconciliou José Mário Branco com fado), conseguiram tornar Camané na mais importante voz do fado contemporâneo.
Oiça-se Infinito Presente e atente-se na forma como todos os instrumentos estão ali para servir a expressividade, a emoção veiculada por Camané. Isto é obra de José Mário Branco. A ele devo parte do meu fascínio pelo fado.
Mas voltemos às suas canções, aos temas que marcaram uma geração. Em 1973 dá-nos Margem de Certa Maneira, um disco ainda mais denso do que o anterior e com menos canções que pudessem ser vistas como um single, mas onde a qualidade se mantém em toda a linha. “Engrenagem” é uma canção que é aflitiva às primeiras audições, mas que rapidamente se entranha devido à sua melodia cativante. “Eh! Companheiro” mostra os dotes de orquestrador de José Mário Branco que completa a canção com arranjos de cordas deliciosos e “A Morte Nunca Existiu” recupera um belíssimo poema do poeta António Joaquim Lança.
Mas a pièce de résistance deste disco é a canção “Aqui Dentro de Casa”, uma crítica à violência contras as mulheres tão comum em todo o espectro político da esquerda revolucionária à direita conservadora. Esta canção colocava José Mário Branco do lado de fora do carneirismo político. As críticas devem ser feitas a quem de direito, mesmo que seja um sindicalista que lute pelos direitos dos trabalhadores o agressor.
“Eu conhecia pessoas que se diziam de esquerda e que em casa tratavam mal as mulheres, porque era normal tratar mal as mulheres. E eu dizia-lhes: “Epá, não, pá. Nós tratamos mal as nossas mulheres e não pode ser”. E houve pessoas que ficaram chateadas comigo quando eu publiquei essa canção”, contou-me o José Mário Branco em 2018, quando confessava que ainda estava “tudo por fazer” no que diz respeito aos direitos das mulheres. Porque muitas vezes as canções são repetidas sem julgamento crítico, porque são encaradas como meros instrumentos de entretenimento, sem ter em atenção a sua mensagem.
Entre 1974 e 1979 andou pelo país fora com o Grupo de Acção Cultural a animar as povoações Portugal fora, cantando em palcos não preparados para receber 10 e 15 músicos de cada vez, a divulgar a mensagem da União Democrática Popular, esse partido ainda mais à esquerda que o PCP do PREC, e a insultar Álvaro Cunhal. Muitas vezes foi expulso a pontapé do palco pelo público. As canções que produziu nesta altura foram menos conseguidas do que as anteriores porque a intervenção era mais importante que a musicalidade.
Em 1978 volta a recolher-se e a trabalhar as canções de A Mãe, uma peça do Teatro da Comuna baseada no texto de Bertolt Brecht, por sua vez inspirado no romance de Maximo Gorky, livro apologista da revolução do proletariado na Rússia imperialista. Compõe 12 canções que foram interpretadas por si e pelos actores durante a peça. Exercício de polifonia e de instrumentação popular, é provavelmente dos mais difíceis disco de José Mário Branco, mas também um dos mais interessantes. Foi neste teatro que conheceu Manuela de Freitas, actriz maior e amor da sua vida que esteve ao seu lado até ao final da vida e que se abriu ao fado.
Entre 1980 e 1981 esteve em residência no Teatro Aberto com o espectáculo Ser Solidário. Tocava novas canções entre elas o “Fado Tristeza” (uma resposta aos comunistas que diziam que a luta só podia ser alegria, como defendia Lenine), “Fado Penélope” (que viria a ser cantado por Carlos do Carmo), “Eu Vim de Longe, Eu Vou Pra Longe” ou a faixa título.
Também nestes espectáculos foi estreada aquela que é provavelmente a mais genial composição cancioneiro português dos últimos 40 anos: “Inquietação”. O acompanhamento de fado, o trinar da guitarra portuguesa, a entrada do contrabaixo carregado de swing, a bateria com escovas, os toques inesperados de piano e a melodia de saxofone. E a entrega de José Mário Branco que empresta a voz ao poema que captura na perfeição o que é ser humano. Este viver numa constante inquietação, inquietação, sem nunca saber o que o amanhã nos reserva, estar sempre pronto a abraçar uma nova causa, batalhar por um futuro onde tudo é dourado e ter confiança de que o amanhã pode ser melhor.
No final de cada espectáculo havia uma pérola: “FMI” essa canção-manifesto que capturou perfeitamente o que é ser português. As constantes queixas, sacudir a culpa de cima do ombro, o apontar o dedo a todos os outros e continuarmos a ser um “povo de respeito, né filho? Porque nós somos um povo de respeitinho muito lindo”.
Tudo certo, era uma canção comprida e de crítica social, terão pensado os primeiros a ouvir. Mas nada fazia esperar aquilo que chegaria a meio. Uma cena de catarse como nunca a música viu. Um homem a abrir a sua alma em cima de palco, a deixar a nu as suas inseguranças, medos e desejos.
Não te chega para o bife? – antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a farmácia? – antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o tribunal? – antes a multa do que a morte! Não te chega para o cangalheiro? – antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros! Hã? Sempre a merda do futuro! E eu que me quilhe! Pois, pá! Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra! anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal-viver, é? “O menino é mal criado”, “o menino é pequeno-burguês”, “o menino pertence a uma classe sem futuro histórico”…Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho só um minuto, vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho, filhos da puta, deixem só um bocadinho, deixem-me só para sempre, tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega, sossego porra, silêncio porra, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me morrer descansado.
Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado, eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto, eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa, deixem-me só porra! Rua! Larguem-me! Desòpila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta!
Eu quero morrer sozinho ouviram? Eu quero morrer, eu quero que se foda o FMI, eu quero lá saber do FMI, eu quero que o FMI se foda, eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua! desandem daqui para fora!
A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! Oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe…”
Confesso. Sempre que oiço os gritos dilacerantes de “oh mãe”, os meus olhos marejam-se de lágrimas. Está ali um homem outrora esperançoso que agora se encontrava derrotado, um ser que deseja desnascer e cujo único desejo era ser feliz, porra. Ser feliz agora! Um revolucionário a quem as promessas de Abril falharam. Um homem que desejava ardentemente poder responder a quem perguntasse “De quem é o Carvalhal?”: É nosso!
José Mário Branco tinha em si ainda mais três discos. A Noite e Correspondência, escreveu missivas em forma de canção a Jesus Cristo (“Emigrantes de Quarta Dimensão”), a José Afonso (“Zeca”), Hanna Arendt (“Shalom, Palestina”) e aos netos (“Quando eu For Grande”).
Resistir é Vencer, de 2004, é um dos grandes discos da música portuguesa, com canções tão excepcionais como “As Contas de Deus” (“Alguém que acorde esse país/ que pegue fogo aos álibis/ De quem pensa que o dinheiro/ Se gasta primeiro que o amor”) ou “Canto dos Torna-Viagem” (com Fausto Bordalo Dias.
Em 2007 levou a palco uma nova canção-manifesto intitulada “Mudar de Vida” e tocada apenas mais uma vez em 2008.
Em 2009 concretizou um sonho de longa data: estar em palco com os companheiros de luta Fausto Bordalo Dias e Sérgio Godinho nuns concertos a que chamaram Três Cantos. Ver os vídeos de José Mário Branco é ver a face de um homem feliz. Agradado por poder invocar e homenagear o mestre e amigo José Afonso. Satisfeito por poder partilhar o palco com dois homens que respeitava e mostrar as suas criações que eram um espelho da forma como via o mundo.
Depois remeteu-se ao silêncio. E assim ficou. Não mais cantou, não mais gravou. Emprestou os dotes de produtor a Camané, compondo algumas canções para quem achasse que fazia sentido fazê-lo e colaborando de quando em quando com o teatro, mais recentemente na encenação de Romeu e Julieta para João Mota. Foi ainda lançado em 2018 um álbum seu, Inéditos, com músicas que tinham ficado esquecidas por aí.
Morreu esta terça-feira, 19 de Novembro, em Lisboa. Tinha 77 anos. Dizia que as suas canções eram auto-biográficas e, por isso será “muito mais vivo do que morto” até que deixe de ser ouvido.
Escrevo estas palavras como a minha catarse. Conheci José Mário Branco numa palestra em 2013 e falei com ele duas ou três vezes ao telefone até que em Dezembro de 2018 me sentei na sua sala para o entrevistar. Fumou cigarrilhas, contou histórias e mostrou-se interessado em perceber o mundo. Falou-me das suas canções, das do Zeca e de como era importante compreender, escrever e lutar pelos outros.
Sei que foi feliz ao lado da Manuela, dos filhos, dos netos e do Zeca (a fotografia em que aparece com ele a lutar no chão é de uma candura juvenil deliciosa). A música foi a sua amante e foi boa para ele. E ele foi infinitamente bom para mim. Por isso, esta é a minha catarse, despedida e agradecimento a um homem verdadeiramente bom.