Estávamos em 1979, o hype do punk estava a apagar-se e a Thatcher tinha acabado de subir ao poder. Era preciso de uma só assentada fazer a história do rock and roll avançar e dar um pontapé no bafiento Thatcherismo. Entertainment!, primeiro e melhor álbum dos Gang of Four, consegue a dobradinha.
O essencial da estética punk estava já bem assimilado pelos quatros estudantes de Artes da Universidade de Leeds: lição nº 1- o “Do it yourself” é sempre preferível à interferência criativa dos intermediários profissionais; lição nº 2- os Eagles devem ser apedrejados de cada vez que toquem os solos de guitarra bonitinhos do “Hotel California”; lição nº 3: as canções de amor são uma treta. O que já não fazia de todo sentido era plagiar até à náusea os Pistols e os Clash de 1977. Era preciso dar um passo em frente e reinventar tudo outra vez – o que os Gang of Four fizeram enxertando o funk, o reggae e o dub nas suas raízes punk. O resultado é uma música dissonante mas dançável, selvagem mas arty, complexa mas urgente.
Começaram numa editora independente (Fast Product Label), atingindo algum sucesso com o single “Damage goods” (mais tarde regravado no Entertainment!). Atraídos pela boa recepção do single (talvez a canção mais radio friendly dos Gang of Four, que passaria perfeitamente por um hit dos Táxi se fosse cantada em português), a EMI convida-os para lá gravar o seu primeiro LP, o que aceitaram. A banda de Yorkshire não tinha, e bem, qualquer pudor em assinar por uma major: quanto mais gente fosse corroída pelos seus statements, melhor. Os seus limites eram apenas os da sua autenticidade. Quando foram convidados a tocar o single “At Home He’s a Tourist” no programa televisivo “Top of the Pops”, e a puritana BBC exigiu como condição que a frase “and the rubbers you hide in your left pocket” fosse alterada, os Gang of Four não aceitaram. Tinham a perfeita consciência de que sem esta rampa de lançamento de visibilidade mediática, muito dificilmente sairiam da obscuridade. Mas a integridade artística do gangue dos quatro não era negociável.
O primeiro membro do gangue chamava-se Hugo Burnham. Introduzia as tais batidas funk de uma forma bizarra, como se tocasse a bateria de trás para a frente – o que nos põe de tal forma nervosos que não é aconselhável pegarmos em cutelos de cozinha nas horas seguintes.
Por sua vez, Dave Allen rouba ao Reggae aquelas linhas de baixo possantes que nos fazem formigueiro nos pés e nos dão uma vontade súbita de comprar erva.
Mas a arma secreta dos Gang of Four é, sem dúvida, a formidável guitarra de Andy Gill. Como bom herdeiro do punk que era, não são os solos que o atraem (só no fim do “Damaged Goods” lá aparece um tímido solo, tocado com indisfarçável vergonha). A melodia é intencionalmente sacrificada em nome da exploração do ritmo, seja através do gingar disco-sound (arranhando as cordas presas) de “Not Great Men” (de tal forma influente que os Franz Ferdinand fizeram toda a sua carreira a partir daí), seja o acorde dissonante repetido obsessivamente contra o amplificador em “Ether” (roubado tantas vezes pelos Rapture), seja o anti-solo de “Return the Gift” (que avança lento e desconjuntado como um robot gigante a cair e que constitui a base da alimentação do Tom Morello dos Rage Against the Machine).
Outra característica que nos fascina em Andy Gill é a sua manifesta preguiça. Gill nunca toca muito tempo seguido e gere, como ninguém, as pausas e as interrupções. Esta sua economia cria uma sensação de espaço, que é uma das imagens de marca do som da banda. Décadas mais tarde os XX seguiriam um caminho semelhante. Aliás, encontramos ecos da guitarra de Andy Gill por todo o lado: Jane’s Addiction, U2, Red Hot Chili Peppers, Rage Against the Machine, LCD Soundsystem, Franz Ferdinand, !!!, The Rapture, The Rakes… Que banda estreou esta semana? Curiosamente, os discos seguintes dos Gang of Four nunca conseguiram sair da mediania. Não deixa de ser irónico que um disco de referência para tantas bandas tenha acabado por influenciar tão pouco os próprios Gang of Four…
E, por fim, na melódica e na voz, o cabecilha do gangue. Jon King canta de uma forma crua e descuidada à Joe Strummer como todos os putos o faziam na altura. A sua inovação não estava na voz mas sim no que a sua voz cantava. Se o Dylan levou a literatura para a Pop, Jon King foi o primeiro doido a levar os ensaios de crítica situacionista e neo-marxista para a Pop! Começa logo com o título do álbum, Entertainment!, jogo de espelhos em que na capa de um objecto de consumo cultural se satiriza a cultura enquanto objecto de consumo. Continua depois com todo o grafismo do disco (assinado por Andy Gill e pelo próprio). Imagens televisivas a preto e branco são acompanhadas com frases-chave do subtexto manipulador do media (“os factos são apresentados com neutralidade para que o público tome a sua própria posição”). E, na própria capa, uma sequência Pop Art com imagens de um índio e de um cowboy a apertarem as mãos, com as seguintes legendas: “O índio sorri, pensa que o cowboy é o seu amigo.”; “O cowboy sorri, está contente pelo índio ter sido enganado.”; “Agora ele pode explorá-lo”.
Mas é nas letras que o seu esquerdismo sofisticado se revela mais cirúrgico. Em “Ether” é estabelecido um contraste entre o idílio da riqueza prometida pelo petróleo dos mares do Norte, e as condições brutais a que eram sujeitos os prisioneiros políticos na Irlanda do Norte (“estilo de vida paradisíaco/fechado em long Kesh/procurando o prazer /tortura no bloco J”). Nada escapa à voracidade do mercados – dizem-nos, por sua vez, “Return the Gift” e “5.45” -, nem sequer o que há de mais íntimo ou mais dramático na vida humana (“Está no mercado/Estás na lista de preços”; “A luta da guerrilha é o novo entretenimento”). O mesmo tema de uma certa alienação mediática volta a aparecer em “I found That Essence Rare” (“Vê a miúda na TV vestida com um bikini/ela não sabe mas está vestida para a bomba H”). Mas talvez o tema mais recorrente do álbum seja um olhar cínico e distanciado em relação ao amor. Aparece em “Natural’s Not In it” (“o natural não está aí; as tuas relações são de poder”), na cativante “Damaged goods” (“às vezes penso que te amo, mas eu sei que é apenas lascívia), e em “Contract” (“é mesmo como é ou apenas um contrato no nosso interesse mútuo”). Mas onde essa subversão da canção de amor atinge o seu clímax é em “Anthrax”: depois de um minuto e meio de feedback barulhento da guitarra de Andy Gill (e antes da reaparição do mesmo feedback) ouvimos a sobreposição de duas pistas de voz, difíceis de apreender em simultâneo. Numa das pistas ouvimos a melodia da canção (“o amor vai-te apanhar como um caso de anthrax e isso é qualquer coisa que eu não quero apanhar”), enquanto na outra pista escutamos um monólogo de Jon King, onde explica a sua posição sobre as canções de amor (“Não estamos a dizer que haja qualquer coisa de errado com o amor, apenas não ache que faça sentido que o que acontece entre duas pessoas seja rodeada em mistério”).
Enfim, o disco ideal para impressionar miúdas giras com pinta de intelectual de esquerda, mas também indicado para dançar freneticamente com miúdas giras de direita já com os copos.