À boleia da edição do segundo disco de Luta Livre, Defesa Pessoal, estivemos à conversa com Luís Varatojo. Falámos de tudo e de mais um par de botas, do nacional-cançonetismo e da canção de intervenção, dos Peste & Sida e d’A Naifa, da música de raiz portuguesa e dos novos códigos de auto-censura. Uma ideia foi recorrente: as pessoas andam adormecidas. É preciso acordá-las com canções. E agora tem de ser à bruta…
Tens agora um novo disco, Defesa Pessoal, do teu projecto a solo Luta Livre. Este disco é diferente do primeiro, que era mais baseado em samples, cruzando o jazz com o hip-hop, enquanto este foi escrito à guitarra em formato-canção. Porquê esta evolução?
Não sei se é evolução mas, pelo menos, foi aquilo que senti que devia fazer. Comecei a fazer o outro disco com essa ideia de ir “samplando” discos de jazz. Não gostava de jazz quando era puto, ninguém gosta. Só quem vai para a escola de jazz é que gosta de jazz desde miúdo. É como o fado. Mas a partir de determinada altura comecei a interessar-me pelo jazz e a comprar montes de discos, os clássicos, Coltrane, Miles, Monk, essa gente toda, e comecei a interessar-me por aquilo, houve uma altura que só ouvia jazz. Quando comecei a escrever algumas coisas em 2018, que viriam a dar no primeiro disco de Luta Livre, comecei a pensar: o que é que eu vou fazer com isto? Tinha acabado de sair do processo d’A Naifa e de Fandango, não me apetecia pegar outra vez numa guitarra portuguesa. Quis fazer isto de outra forma, apanhar uns beats de jazz, sacar umas frases, uns ambientes, uma nota aqui, outra ali, juntá-las numa escala. Depois, comecei a tentar construir instrumentais com esses beats e fiquei contente com o resultado. Quando comecei a cruzar as letras, comecei a achar que fazia sentido. Eu também já não vocalizava há muito tempo – n’A Naifa tínhamos uma cantora, o Fandango era instrumental. Já há muitos anos que não metia a voz, apetecia-me dar voz àquelas letras que tinha escrito. Então comecei a experimentar esses textos de uma forma mais falada, com algumas rimas, e comecei a gostar do resultado. Daí nasceu esse primeiro disco, o Técnicas de Combate. Logo depois de o álbum estar acabado, e começarmos a tocá-lo ao vivo, continuei o mesmo processo, escrevendo textos, trabalhando no meu pequeno estúdio, que é uma coisa que faço todos os dias. Peguei nuns restos do outro disco, alguns samples e instrumentais, mas quando comecei a trabalhar nisso, comecei a achar que o resultado era igual ao outro, e não queria fazer outro disco igual. Eu também não gosto de ouvir dois discos iguais, com a mesma fórmula. Pensei: e se eu começar a construir de raiz na guitarra? E então foram saindo uns riffs, umas progressões harmónicas, e quando comecei a confrontar isso com as letras que andava a fazer, a coisa começou a bater certo, até porque as letras também foram feitas de outra forma.
No primeiro disco, o ponto de partida eram notícias, recortes de jornal…
O ponto de partida foi esse. Aliás, eu sacava alguns bocados de textos inteiros que depois trabalhava. Às vezes, transformava algumas expressões. Outras vezes, punha a rimar. Organizava o texto para que tivesse uma métrica mais encaixável na música mas as ideias da maior parte das canções vêm de artigos que apanhei. Às tantas, apareceram-me expressões que eu não ia chegar lá. Como ando sempre a ler notícias, todos os dias de manhã passo a vista pela imprensa, artigos de opinião, etc., é uma coisa que me interessa estar a par, estar informado, acabo sempre por encontrar artigos fixes, escritos de uma certa forma, e com um certo ponto de vista, que se manifestaram adequados para aquilo que queria fazer. Neste novo disco, não. Também vem das notícias mas fui imaginando a coisa na minha cabeça. Não há frases retiradas, há ideias que depois se transformam em frases, e as rimas feitas na cabeça começam a vir em formato-canção, rimando, com a métrica constante.
Este disco tem um maior sentido pop, mais imediato e orelhudo do que o primeiro…
O meu objectivo é sempre esse: comunicar da forma mais prática e directa possível. Eu achava que no outro disco também estava a fazer isso. Olhando para a estrutura das músicas, consigo identificar que no outro disco havia canções que fugiam um bocado à estrutura básica dos 8 compassos, refrão, esticava-me num texto ao longo de 32 compassos, porque o texto justificava, mas para mim aquilo também é música popular. Quando fizemos A Naifa, aquilo para nós era música ultra-popular mas acharam que era uma coisa muito estranha, muito fora do baralho, que as pessoas não iam conseguir compreender. Mas nós estávamos a tentar fazer uma música popular porque nós somos músicos populares, não somos músicos eruditos. Dentro destas nossas referências de música popular, é que vamos experimentando diferentes soluções. Tentamos que seja fresco para nós e para quem nos ouve. Mas a ideia é sempre fazer coisas que comuniquem com as pessoas.
Algumas canções têm elementos de raiz portuguesa, da nossa música tradicional. Numa canção tens uma linha de fado na guitarra eléctrica, duas outras são chulas. Se olharmos para a história da canção de intervenção, Zeca Afonso e companhia, juntavam sempre esses dois elementos: por um lado, a crítica social e política; por outro lado, iam beber às raízes, cuidando do que é nosso. Isso foi um objectivo teu ou foi espontâneo?
As coisas acontecem quando têm que acontecer. A música de raiz tradicional está presente na música portuguesa até na música ligeira. Como no nacional-cançonetismo do anos 50, 60 e 70, em que os cantores iam para a emissora nacional, havia uma orquestra, mas com muito de música tradicional. Aliás, isso era uma intenção do Estado Novo, da propaganda do António Ferro, de criar uma identidade portuguesa, que foi feita através da criação de monumentos, de vangloriar os Descobrimentos, a grande Exposição do Mundo Português, do Minho a Timor. A música tradicional está presente na música portuguesa desde sempre. Na altura do Zeca, do Zé Mário Branco, do Sérgio Godinho, todos eles iam buscar muito à música tradicional portuguesa. De maneira que os elementos de raiz tradicional estão aí, estão antes, estão depois, e estão sempre porque somos portugueses. Eu ouvi muita música de raiz portuguesa, de intervenção. Ouvi muito fado quando era pequeno porque a minha tia só gostava de fado. Depois ouvi Beatles, a primeira música estrangeira que devo ter ouvido foi Beatles, e depois Ramones. Quando, no início dos anos 80, comecei a ouvir a música que queria ouvir, e que os amigos me mostravam, era o punk, o boom do rock português, a new wave. Ou seja, sou um caldeirão onde isto tudo bateu, estas são as minhas músicas. A minha prateleira de discos tem toda esta música. Estou sempre a ouvir música nova. Portanto, quando vou fazer música não me limito a mim próprio a dizer: agora vou fazer um disco de Luta Livre e é só jazz e hip-hop, e agora não vou meter isto que parece mal. Eu estou-me a cagar para isso. Quando chego ao estúdio, faço aquilo que me apetece fazer, e se me está a soar bem, sobretudo se o instrumental leva bem a ideia da letra, isso é o mais importante. E depois há o gosto, o gosto que fui formando ao longo dos tempos acaba por condicionar aquilo que faço, seja em que género musical for. Gosto muito de reggae, por exemplo. Foi espontâneo. Essas canções pediam isso. “O Poder é que Manda”, com letra do António Aleixo, fez-me sentido. Gosto também muito do Fausto. Desses que falaste, se calhar é aquele que vai buscar mais à raiz tradicional portuguesa.
Na “Fruta da Época” há uns salpicos de Fausto…
Se calhar. O Nuno Pacheco, do Público, é que me falou disso, nunca pensei no Fausto para essa música, se calhar pensei mais nele em “O Povo é que Manda”, que tem uns laivos do “Navegar, Navegar”. Mas se tu pegas numa chula remetemos logo para o Fausto, se pegares num blues já é só o blues. Elogiamos é o Fausto por ter feito aquelas músicas todas tão boas…
Falaste n’ “O Povo é que Manda”, em que pegaste numas quadras do António Aleixo e depois acrescentaste quadras tuas…
O António Aleixo tem centenas de quadras. No fundo, a poesia popular é isso, são quadras. E eu queria fazer uma música que respondesse ao seguinte: estamos sempre a dizer que isto está mal, que as pessoas que estão no poder não nos representam, mas nós é que mandamos, nós quando vamos votar é que decidimos quem é que vai para lá. Queria fazer uma música que falasse disso. A primeira coisa que saiu foi esse refrão, e depois ia começar a escrever o resto e lembrei-me: quem é o poeta do povo? É o António Aleixo. Fiz essa experiência de juntar as quadras do Aleixo a esse refrão que escrevi e gostei do resultado.
As letras cruas, directas, orgulhosamente panfletárias, fazem parte do próprio conceito de Luta Livre…
Sim, não tenho problema nenhum com isso do panfletário. Acho que são precisos panfletos. Nesta altura, então, ainda mais. A poesia é necessária mas neste momento acho que mais necessário é tratar os bois pelos nomes. Chegou a um ponto em que temos mesmo de falar directamente sobre as coisas.
É interessante irmos fazendo os paralelismos com a primeira vaga de canção de intervenção. No PREC aconteceu justamente isso. Autores que no tempo do Estado Novo tinham mais liberdade poética, escreviam nas entrelinhas para fintar a censura, pelo que tudo era mais sofisticado, mais estético. Quando chegam ao PREC acham mais útil criar panfletos e palavras de ordem. A situação actual, quase 50 anos volvidos, justifica uma linguagem semelhante?
Acho que sim. Estamos numa altura muito diferente. Quando foi o 25 de Abril, tinha nove anos. Lembro-me bem. Fui para a escola nesse dia. A minha escola era num estabelecimento militar (apesar de eu ser civil e os meus pais também), a Manutenção Militar, no Beato, onde havia escola para os filhos dos funcionários. Fui para a escola nesse dia, os portões estavam fechados, costumavam estar abertos. Entrámos, depois fecharam, e não houve aulas. Estávamos todos à janela da escola, onde se via um portão de entrada da unidade militar, e assisti à chegada de um jipe com uma metralhadora em cima, com aqueles lenços amarelos, eram os paraquedistas, diferentes dos tropas que havia ali naquela unidade e assistimos à cena, eles deviam estar a tratar da rendição, e depois entraram, e depois fomos embora para casa, fomos dispensados, os nossos pais também. Mais claras ainda são as lembranças do pós-25 de Abril, daquele período entre ’74 e ’75. Em Sacavém, onde morava, começaram-se a formar comissões de moradores, tínhamos uma no nosso bairro. Fazíamos festas, bailes, limpezas das ruas ao Domingo, toda a gente se juntava num objectivo comum. Tenho ideia de toda aquela ebulição. O período era completamente diferente deste: agora estamos todos a dormir, naquela altura estávamos todos acordados. E os cantores de intervenção faziam música directa, sabiam que as pessoas estavam acordadas e que iam ouvir aquilo, e que iam agir. “A Cantiga é Uma Arma”, do Zé Mário no GAC, é um manual de como se faz uma cantiga de intervenção, apelando a que se fizessem mais porque era preciso comunicar com as pessoas para que as pessoas agissem. O Sérgio Godinho também, como no “Viva o Poder Popular”. No fundo, os artistas, como dizia a Nina Simone, devem falar daquilo que os rodeia, devem ser um espelho da sociedade, devem ser isso senão não são nada, dizia ela. As canções durante o PREC eram essa esponja do que acontecia à volta, funcionando como panfletos. Hoje as canções devem ser panfletos também, claras e directas, mas o objectivo é diferente, é tentar acordar as pessoas.
Naquela altura, o objectivo era mais ambicioso, havia um pensamento utópico, acreditavam mesmo que era possível construir uma sociedade sem classes…
Exacto. E para quem viveu foi bonito. Era o que estava a dizer. De repente, tens os vizinhos todos a limpar a rua que é de todos, há um espírito colectivo e de comunidade que esses cantores levaram a sério. Quando esse período acaba, as canções também reflectem esse desgosto. Tens o Zé Mário Branco com o “Vim de Longe”. Tens o Sérgio Godinho com o “arranja-me um emprego / pode ser na tua empresa / com certeza / que eu dava conta do recado / e para ti era um sossego”, a anterior unidade da classe operária substituída por “esquemas” para subir a todo o custo. Todos esses cantores manifestaram esse desagrado. O Zé Mário Branco foi mais longe, questionando o próprio sentido de continuar a dar concertos: “vou tocar para quê se não vou mexer em nada?”. Mas eu faço, porque quero tentar ajudar a que as coisas mexam.
Nalgumas letras utilizas uma linguagem propositadamente anacrónica, à PREC. Por exemplo: “na relação entre o trabalhador e o patrão, há sempre um lado que produz e o outro que controla a produção”. Uma mudança na forma porque a nível do conteúdo…
No conteúdo houve uma mudança, mas para pior. Houve uma desvalorização do trabalho. Hoje em dia uma boa parte do país é miserável. Isso era uma das coisas que o 25 de Abril prometia resolver. Tens pessoas a trabalhar 8 horas por dia e são pobres. Com o salário mínimo não conseguem pagar uma renda, não conseguem fazer as compras e alimentar a família como deve ser, acho que há um milhão e meio de pobres em Portugal. Cada vez é preciso falar mais nisso. As condições de trabalho têm-se deteriorado. O meu pai teve que ir trabalhar aos 12 anos, mas depois, quando se deu o 25 de Abril, as suas condições do trabalho melhoraram bastante. O meu pai começou a ter direito a férias, ao descanso ao Sábado, ao subsídio de Natal, uma série de coisas que neste momento estão a andar para trás. Estamos quase a voltar ao Séc. XIX. Agora és contratado por uma empresa, tens que trabalhar a qualquer hora, trabalhas em casa, não tens tempo para a família porque tens que continuar a trabalhar de forma remota, a qualquer hora do dia. Já para não falar do pessoal das entregas, uma escravidão. Isso é um programa que nos tem chegado através dos media. Como na discriminação dos sindicatos. Porque o sindicato é fodido para os patrões. O sindicato organiza os trabalhadores e agora dizemos: “não trabalhamos enquanto não pagares mais”. E eles não querem isto. A linguagem não está desactualizada, eles é que quiseram que ficasse desactualizada, é apenas língua portuguesa, da boa e da bonita. Por isso, não querem que eu diga “trabalhador” mas sim “colaborador”. Por isso, não querem que eu diga “sindicatos”, uma palavra a abater. E não é só aqui, é um fenómeno global.
Também há um elemento estético, quase de brincar com essa linguagem do PREC e estetizá-la. Na “Balada do Trabalhador” dizes “paz, pão, saúde educação”, que vem de uma canção do Sérgio Godinho. Quase como se isto fosse uma pós-canção de intervenção, ou seja, escreves com a noção de que existiu uma primeira vaga, entabulando um diálogo…
Porque fui também influenciado por essa vaga, porque ouvi essas canções todas. Ainda há bocado fui fazer a playlist da TSF e escolhi uma música que é muito pouco conhecida do Fausto, do disco Madrugada dos Trapeiros, de 1977, que nunca foi reeditado, e que se chama: “Uns Estão Bem e os Outros Mal”. Naquela altura, a canção cantava-se até à exaustão por todo o lado, pena ter-se perdido entretanto. Antes de fazer a playlist, fiz um DJ Set só sobre revolução e lembrei-me da música. Ouvi muito todas essas canções. É uma linguagem absolutamente normal. Quando for preciso usá-la, é de usar, não há nada que faça com que não a possa usar, que não a possa recuperar. Hoje em dia também se recupera tanta coisa, toda a música é já reciclagem de outra música que foi feita, se houvesse mais gente a fazer isso até era bom.
Houve uma altura em que a intervenção na música popular ficou adormecida, uma das excepções foi o hip-hop, que sempre teve essa componente de protesto. Agora, dá-me a sensação que, aqui e ali, há quem o faça – Luta Livre, A Garota Não, etc. Achas que estás muito isolado, a pregar no deserto, ou que agora, aos poucos, dentro da música pop portuguesa do século XXI, está a haver um pequeno acordar?
Um pequeno acordar. Mas era bom que houvesse muito mais. Voltando à playlist. Uma das músicas que eu escolhi foi o “Sunday, Bloody Sunday”, dos U2, no Live at Red Rocks. Em 1985 e 1986, essa música tocava nas discotecas todas, no Rock Rendez vous, no News (em Cascais, discoteca de betos), no 2001, tocava em todo o lado. E é uma música de intervenção política e social. Tem a ver com um problema que era irlandês, mas que também é nosso, os problemas são de todos. Passavam em todo o lado, o pessoal abanava o capacete ao som daquilo, ouvia o que estava a ser dito, e hoje não, hoje a música mainstream é completamente inócua, não fala destas coisas. Há guerra no Sudão, há guerra ali, há exploração. Naquela altura, as canções falavam disto, não era por causa disso que deixavam de ser mainstream. Hoje em dia isso não acontece. Era fixe que acontecesse muito mais. O pessoal anda a dormir, tem sido adormecido pela televisão. Os artistas vão um bocado atrás disso, se cantarem determinadas coisas não vão ao festival, se cantarem outras não passam na rádio. Não há hoje nenhum festival como o Woodstock (e eu nem sequer sou desse tempo, é mais da geração dos meus pais), um festival que tinha uma motivação, por isso é que juntou os jovens todos. Hoje os festivais são uma exibição de marcas, um gajo vai a um festival parece que se entra num supermercado, acabam por cultivar uma certa alienação. Mas se os músicos quando vão para aqueles palcos aproveitassem ter milhares de pessoas à frente, e apresentassem letras informativas… A música tem que entreter, tem que chamar a atenção das pessoas, e tem que ser uma música fácil, que as pessoas consigam receber facilmente. As letras é aquilo que nós quisermos pôr lá dentro. Se os músicos fizessem mais isso, se numa plateia do Alive se cantasse “a crise aumenta e o povo não aguenta”, se calhar as pessoas sairiam de lá com outra consciência.
Acreditas que neste mundo pós-ideológico, em que as pessoas estão cada vez mais atomizadas, que uma canção pode mudar alguma coisa?
As canções mudaram sempre coisas. A música foi dos principais veículos de comunicação para praticamente todas as revoluções. Basta pensar na nossa. Antes da revolução acontecer houve resistência feita pelas canções, discos proibidos que passavam de mão em mão. Não havia net. Os discos serviam como passar o panfleto, passar a palavra, passar a informação. Isso aconteceu no fado também. O fado no início do século XX também passava a história e a informação. Depois, foram senhas da revolução. As canções estão sempre ligadas a esses processos. Eu não estou a dizer que vai haver uma revolução por haver canções agora, mas pelo menos gostava de poder ajudar a alguma tomada de consciência…
Há aquele debate filosófico, onde uns defendem que a arte deve ser útil e engajada, e outros que dizem que basta ser bela. Qual é a tua posição?
Esse é um debate filosófico-estético que é muito complexo. Não tenho sequer formação académica para isso…
N’A Naifa, ao irem buscar poesia portuguesa contemporânea, faziam um exercício mais estético, menos engajado?
A Naifa apareceu numa altura, 2003, em que a música em Portugal era cantada em inglês. Achámos que era útil cantar em português, e pegar na música de raiz portuguesa, sobretudo o fado, que também na altura era ostracizado. A rádio só passava música de bandas portuguesas que cantavam em inglês…
O João Aguardela era muito sensível a essa questão…
Ele era um militante da música de raiz portuguesa, de achar que a identidade dele enquanto músico só podia ser encontrada através de uma base de música portuguesa. Ele não era radical da música portuguesa, tanto que ouvia tudo e misturava tudo, Aphex Twin com o pastor lá de cima…
O João Aguardela influenciou-te?
Claro que sim. Eu trabalhei dez anos com ele. Influenciou-me bastante. Arranjámos muitos pontos em comum. Aliás, ele disse uma coisa numa entrevista que nunca mais esqueci: “Ele não faz nada que eu desgoste absolutamente, e eu também não faço nada que ele ache que não devamos ir por aí”. E era um bocado isso. Com diferentes backgrounds mas encontrávamo-nos…
Nos anos 90 foi o auge da música portuguesa virar costas às nossas raízes, nomeadamente renegando o português. Hoje em dia as coisas estão diferentes…
Sim, está bastante diferente. Aliás, agora até se está a transformar numa espécie de moda, o que até é bom que assim seja, pode ser que mais gente pegue nisso e que faça coisas úteis. Mas ainda relativamente à A Naifa: a promotora foi mostrar o primeiro disco à Antena 3 e à Antena 1. A Antena 1 disse-nos: “isto é um bocado fora do tradicional que nós passamos”. E a Antena 3 disse-nos: “isto é um bocado fado de mais para nós”. Ficámos ali no meio, se calhar é melhor fazer uma Antena 1,5. Lembro-me que foi um sarilho. A imprensa até nos recebeu bem mas a rádio, zero, ninguém passou. Nós olhámos para o outro e dissemos: “e agora?, o que é que fazemos?, acabamos com isto ou vamos à luta?”. Fomos à luta e montámos uma tour de 18 espectáculos, e a partir daí o barco começou a rolar. Mostrámos as músicas às pessoas nas suas terras, fomos a montes de cidades. Fizemos uma tour em 2005, depois outra em 2006, com o outro disco. Fomos para a guerra. Contornámos o assunto e a coisa acabou por se concretizar.
Algumas canções dos Peste & Sida, como a “Alerta Geral” e o “Dever Cívico?”, têm uma componente meio anarquista, diferente da onda de Luta Livre…
Fizemos a letra do “Dever Cívico?” quando o Cavaco ganhou as eleições com maioria absoluta. Nesse dia, fomos para o ensaio, rasgámos os nossos bilhetes de identidade, estávamos desiludidos. Nós sempre fomos votar, achamos que isso é essencial, se não vais votar não podes mandar vir. Já bastava no tempo do meu avô que ele não podia votar, só em eleições manipuladas…
Mas havia uma componente mais anti-autoritária nos Peste…
Sem dúvida. Tínhamos vinte e poucos anos, faz parte da cena. Sentíamos aquilo, falávamos daquilo. “Pátria Sábia” é um ataque ao serviço nacional obrigatório, por exemplo.
Este disco chama-se Defesa Pessoal. O José Mário Branco, no GAC, dizia que a cantiga era uma arma. Achas que estas dez canções são armas de ataque ou de defesa?
São armas de defesa. Isto pode ter várias designações. Já chamaram música de intervenção, de protesto. Quando foi o primeiro álbum disse que gostava mais que fosse música de informação, não estou aqui a apelar a que o pessoal vá ali partir os vidros do banco, ou que incendeiem os caixotes, não há nada disso nas letras. O que há é uma tentativa de informar, de estabelecer aqui um canal de comunicação que dê uma perspectiva diferente daquela retórica com que nos bombardeiam todos os dias nos media, nos canais de notícias. Não quero dizer que a informação não seja livre, mas é bastante condicionada, há critérios editoriais, há coisas que não podem ser ditas, e há sempre um determinado prisma, e eu tenho também o meu prisma. E é isso que eu quero fazer, tentar que isto seja de alguma forma informativo, eu acho que isto é assim, e tu, o que é que achas? Há música de protesto onde se incentiva a fazer alguma coisa. O que eu incentivo nessas músicas é que o pessoal se junte e converse e que vote…
Woody Guthrie tinha escrito na sua viola: “this machine kills fascists”. E tu voltaste à guitarra, que é o teu instrumento de eleição. Identificas-te com essa metáfora?
É uma metáfora. Era incapaz de matar alguém. O que acho que ele quer dizer não é que vai matar ninguém fisicamente, mas sim matar o fascismo, que as canções que fazia eram uma arma que podia matar a ideia do fascismo, mais do que os fascistas em si. Não tenho nenhum amor pelos fascistas, obviamente, mas também cada coisa no seu lugar. Devem ser desmontados da forma certa.
Trabalhaste sempre em parcerias: Peste & Sida e Despe & Siga, com toda a sua tropa; Linha da Frente e A Naifa com o João Aguardela; Fandango com o Gabriel Gomes. Este é o teu primeiro projecto a solo. Há uma ironia no facto de quando a tua mensagem é tão explícita no apelo a nos juntarmos, é quando pela primeira vez o teu processo criativo é mais individual…
É verdade. Aconteceu por acaso. Consegui construir um pequeno estúdio, ganhando assim autonomia, e o que é facto é que vou trabalhando, as coisas vão aparecendo. Sempre me interessou programar beats. Fui aprendendo ao longo do meu percurso, n’A Naifa, na Linha da Frente, até antes. Nos Despe, nos anos 90, já tinha um computador, um Mac, e já então fiz algumas programações. Uma no segundo disco, Família Virtual, e três ou quatro no terceiro disco, de jungle e não só. Na Linha da Frente trabalhámos muito assim, e depois os instrumentos que eram necessários foram adicionados por cima. Eu comecei a sentir-me à vontade nesse meio, de produzir o som sozinho, quero o baixo assim, quero a batida assado, tem-me dado gozo fazer isto desta maneira, depois vou chamando o pessoal. Só depois vou acrescentando ingredientes. É preciso coros, é preciso percussões… Vou chamando a malta e depois ao vivo é sempre um colectivo.
A capa tem escrita Luta Livre à máquina de escrever, isso também é um statement?
Tudo o que um artista faz é um statement, um pintor quando faz um quadro está a fazer um statement, numa exposição ainda mais. Um músico também quando faz um disco, a menos que seja um disco completamente desprovido de ideias, que também há muitos, é sempre um statement, queres sempre dizer alguma coisa. Eu para este disco tive a ideia também de pegar num lado que me é bastante familiar, que eu fiz design gráfico em Belas Artes, é um lado que eu tenho, sempre fiz a gestão das capas dos discos desde os Peste & Sida.
Esta capa foste tu que fizeste…
Sim, esta fui eu mesmo que fiz.
E a anterior?
A anterior foi uma ilustração digital do João Tombeiro e depois um arranjo gráfico do Luís Carlos Amaro, com quem eu trabalho também há muito tempo. Mas neste decidi pegar eu na coisa, e quis que ele saísse fora do meio digital. Tenho lá uma máquina de escrever em casa, e pensei: “vou começar a ver no que é que isto dá em termos gráficos.” Precisava de uma coisa analógica, uma cena que fosse feita por mim também, está tudo muito digital. Olhas para as capas, a manipulação gráfica digital é sempre a mesma coisa, escolhes uma letra de máquina no computador, e por mais que aquilo tenha impressões nunca é igual a quando tu bates na máquina. Às vezes, anda mais um bocado, outras, menos, eu queria ali uma certa irregularidade que é impossível reproduzir num computador. E depois fiz umas experiências e gostei do efeito.
Toda a parte visual, da capa do disco, do livrete, dos vídeos de animação, são um elemento importante…
Sim, claro. Sempre com o mesmo objectivo: o que interessa é comunicar bem a ideia. Os vídeos têm as letras, são tudo vídeos de animação, usamos esses vídeos ao vivo como fundo de palco, as letras estão sempre lá, mesmo que não se perceba bem o que estou a dizer aquilo está lá, e faz muito efeito, as pessoas ficam mesmo com aquela ideia de isto ser música de informação. Tudo isso é sublinhado e optimizado pelos grafismos.
O facto de as letras serem tão engajadas fecha algumas portas?
Claro que sim. Se não se quer que se fale de determinadas coisas nos meios de comunicação, então um gajo vai pôr isso em música? Não estou a dizer que sou completamente excomungado. A TSF tem passado, na Antena 3 também está a passar. Tenho feito também algumas entrevistas, obrigado, também por este espaço que me estás a dar. Mas tenho noção de que até em concertos, onde programadores até gostam da música mas depois há pruridos de ir para cima do palco falar destas coisas… Acho isto completamente absurdo, parece que estamos no antes do 25 de Abril, mas é real, estamos neste ponto. Lá está, se fores lá com poesia e metáforas ainda passa, parece que temos outra vez de disfarçar. Se calhar, num terceiro disco vou acabar outra vez por ter de fazer isso, vamos lá ver.
Mas é um preço que pagas de bom gosto…
A ideia foi agora ir à bruta. Era o que dizia o Joe Strummer numa entrevista quando fizeram o London Calling, ao confrontarem-no com um registo mais polido e multifacetado, em contraste com a agressividade punk anterior: “às vezes, precisamos de ir lá com a bomba, outras vezes, é com muitos martelinhos a bater na cabeça, porque acordam melhor…”
Fotografias: Rui Gato