Coral, dos Gift, é o início de algo novo de uma banda que sempre soube reinventar-se. A banda arrisca mais e troca-nos as voltas, transporta-nos para uma nova sonoridade, muito portuguesa, muito melancólica e surpreendente. Para onde nos levam os Gift?
I can’t understand why people are frightened of new ideas. I’m frightened of the old ones.
John Cage
Coral é o nome do mais recente álbum dos Gift. Editado em setembro deste ano em exclusivo na Rev, aplicação criada pela banda em plena pandemia, e em outubro em formato físico, o décimo álbum vem revolucionar a produção do grupo Alcobacense.
Confesso que a minha primeira audição foi ao vivo e a segunda também. Ia sem qualquer expectativa e não imaginava o que iria escutar. A palavra certa é surpresa. Depois dos dois primeiros embates fui ouvir o disco que é, em quase trinta anos de história, o mais ousado, e até arriscado, da banda.
O disco é apresentado numa edição de luxo limitada, em formato livro de capa dura, acompanhado por fotografias, pelas letras das músicas, por uma seleção de textos pessoais de cada um dos elementos do grupo e de alguns dos participantes do projeto. A lista de contribuidores deste disco é extensa, dos arranjos à produção aos contributos vocais com a participação de diversas vozes e coros. Trata-se de uma ideia original de Nuno Gonçalves, composto por ele e pela Sónia Tavares e abraçado com entusiasmo por John Gonçalves e Miguel Ribeiro.
Tudo é diferente neste disco, os Gift afastam-se da pop dançável que os caracterizava para arriscarem tudo com uma sonoridade completamente diferente. Ao longo do álbum, o tom é solene, fúnebre, belo. Tudo começa com a (omni)presença de um coro com 48 elementos de tom sacro e etéreo a fazer lembrar a banda sonora que Danny Elfman fez para o filme “Eduardo Mãos de Tesoura” (influência esta assumida pelos compositores). A eletrónica marca também o disco de uma ponta à outra, por vezes discreto com um toque à la Sparks em “The Girl Next Door”, outras vezes forte com batida vigorosa com laivos de Jungle/Trip Hop dos anos noventa, no caso de “Cancun”. Para além do coro, a banda introduz uma refrescante e inovadora portugalidade que o torna num álbum conceptual. A participação dos Pauliteiros de Miranda e das vozes dos Gaiteiros de Lisboa em “Sete Vezes” (um dos pontos altos do disco e escolhido para o primeiro single) e “Única” (dueto entre Sónia Tavares e Nuno Gonçalves) em muito contribuem para essa portugalidade à maneira dos Gift.
“Dissonante” é um bom exemplo de como os diferentes elementos – coro, Sónia Tavares e eletrónica – combinam bem. De seguida, há “Um Lamento” em crescendo com a voz e o coro em sintonia com a batida. “O Regresso” recorda-nos alguns dos temas dos Gift cantados em português, como “Clássico” ou “Primavera”. “Adagio”, versão feliz da composição de Albinoni (que nos anos sessenta foi popularizada pelos Doors) com letra de Ari dos Santos e interpretada por Teresa Silva Carvalho em 1973, ganha nova vida na voz da Sónia. A cantora alcobacense está mais grave que nunca, nos dois sentidos da palavra, simultaneamente forte e frágil, destacando-se das dezenas de vozes sobrepostas. “Passa-se o Tempo” será talvez o tema mais negro do álbum, na sonoridade e na letra. Poderá ser uma reflexão, tal como o próprio título indica, sobre a nossa própria mortalidade (e a dos outros) e do envelhecimento inexorável. A canção “Infinita” termina o álbum em tom de solidão, mas também de esperança pois sabemos que “perder não fará de ti pior”.
Ao longo da sua carreira, os Gift cantaram algumas músicas em português, mas nada do que fizeram até hoje é como aqui, em Coral, ou seja, dos onze temas, apenas “The Girl Next Door” e “Cancun” são cantados em inglês. Escrever e cantar em português é mais difícil, talvez porque “a língua inglesa fica sempre bem” como diziam os Clã. Em Coral, o português impõe-se e fica bem.
Em jeito de conclusão: um coro de tom sacro, com elementos de música tradicional portuguesa e acompanhamento vigoroso de música eletrónica é um grande desafio, mas a banda canaliza esta sonoridade para um resultado ímpar, pela coragem, e original, pela mescla. A banda alcobacense fez história dentro da sua própria história. O que irão os Gift fazer a seguir? Nunca estive tão curiosa.