Foi em março de 1970 que o primeiro disco dos Quarteto 1111 viu a luz do dia. Seria sol de pouca dura, já que o álbum foi retirado do mercado pela censura. Aqui vamos espreitar brevemente, canção por canção, este lendário trabalho.
As canções denunciavam o racismo, a imigração causada pela pobreza e continham ideias humanistas e de igualdade, tudo coisas que o regime da altura não via com bons olhos.
Miguel Artur da Silveira, José Cid, António Moniz Pereira e Jorge Moniz Pereira já tinham editado em 1967 o EP A Lenda de El-Rei D. Sebastião e participado no festival da canção em 1968, ano em que também editam mais dois singles e Jorge Moniz Pereira é substituido por Mário Rui Terrra no baixo. Ou seja, já tinham conseguido marcar o nome da banda no tímido panorama musical de então com canções sobretudo inspiradas na história.
Este LP é de facto um salto em frente, especialmente pelo conteúdo das letras, logo a começar pelo “Prólogo”, um tema onde se declamam frases como “Quando Deus criou o mundo/ Deu ao homem uma só cor de pele”.
Sem medos, este é um disco que diz ao que vem e a mensagem é inequívoca. Em finais do período de modernização social intitulada “primavera marcelista”, talvez os Quarteto 1111 pensassem que as suas mensagens fossem ignoradas pelo regime que parecia perder cada vez mais força e levantava a mão pesada da censura. Mas o que aconteceu foi que a leveza da mão não era assim tanta.
Como consequência capitalista, isto significa que a versão original do disco é um prémio para os colecionadores e apenas com a edição em CD de 1998 ou a mais recente edição limitada e numerada de 500 cópias da Armoniz, de 2015 se pode dar a conhecer a versão original do álbum, sem ser em compilações. E isto abre uma discussão, para outra altura, sobre a preservação e disponibilização do património áudio português.
Sim, porque além de polémico e censurado na altura, este é um trabalho de alta qualidade, moderno na altura, bem gravado e em suma um excelente disco que merece ser descoberto, pela história que carrega e pela qualidade da música.
Como prometido, vamos espreitar brevemente, uma por uma, as faixas que compõen o disco.
A seguir ao “Prólogo” temos “João Nada”, história de um emigrante que sai do país em busca de uma vida melhor e volta a Portugal para não encontrar ninguém à sua espera. Canção acima de tudo acústica, com uma seção de cordas ao estilo folk.
O tema seguinte, “Domingo em Bidonville” atira-se de cabeça à temática de Bidonville, bairro de lata em Paris onde viviam muitos emigrantes portugueses. De novo a pobreza, a saudade e a busca (muitas vezes em vão) de uma vida melhor. Para lhe dar um toque francês, pontua um acordeão, ao mesmo tempo que um muito presente baixo lembra a pop do final dos anos 60.
A emigração continua a ser o tema em “Uma Estrada para a minha Aldeia”, onde a voz de José Cid passada por um phaser e um teclado estilo farfisa ou wurlitzer mostra que o grupo estava em cima do que se fazia em termos musicais lá fora, tarefa que não era tão simples como possa parecer, já que o acesso a discos novos era algo limitado na altura.
É na quinta faixa que encontramos a bizarria quase instrumental intitulada “A Fuga Dos Grilos”. Um excelente instrumental entrecortado com sons “foley” que lhe dá um ar de banda sonora de um filme avant-garde.
E se a temática da imgração passasse despercebida, “A Trova do Vento Que Passa” de António Portugal e Manuel Alegre, gravada originalmente por Adriano Correia de Oliveira em 1963 e, curiosamente também gravado em 1970 por Amália Rodrigues (com outra adaptação da letra que a fez ser menos polémica), destapa por completo a intenção dos Quarteto 1111 em marcar a sua posição. Confesso que esta é a minha versão favorita desta canção, muito estilo cantautor dos anos 60/70.
E é neste crescendo temático que chegamos a “Pigmentação”. Com o país perdido no mato de uma guerra que tinha perdido o seu propósito e a vontade de a manter, esta canção com toques de jazz aparece com letras como “Se a pigmentação do negro / É problema universal / A pigmentação do branco / É pigmentação mental / Que a pigmentação do negro / É pigmentação normal”. Esta, em conjunto com “Lenda de Nuambungongo” são tidas como as responsáveis por chamar à atenção de uma censura que ainda recusava viver no presente.
Mas entre uma e outra ainda temos “Maria Negra”, canção também sobre a invisibilidade e racismo, uma boa balada pop mas com o baixo demasiado presente a ponto de praticamente estoirar. O tema começa com cravo, já que a inspiração em Beatles nunca foi algo escondido. Aliás no futuro o grupo lançará um tema intitulado “Ode To The Beatles”, em lamento pela separação dos Fab Four.
Já na reta final do disco, a “Lenda de Nuambungongo” não poupa palavras e ataca a guerra em Angola, onde “rajadas de vento tingiram o céu” e as montanhas gritam “vendem-me as entranhas para ver-me o tesouro”. Baixo, teclado, bateria e um xilofone criam uma peça outra vez com bastante influência do jazz.
E como vamos com tudo neste disco, volta a voz de phaser numa canção intitulada “Escravatura”. Mais que nada, aborda o tema sobre a escravatura moderna da pobreza à procura de oportunidades. Desigualdade social, racismo, guerra, humanismo, tudo cabe neste disco de ideias bem marcadas e o resumo é bem feito no “Epílogo”, última canção do disco.
O Quarteto 1111, levado pela voz de José Cid, não fugiu à polémica, e isso fez com que se posicionasse do lado certo da história. O lado certo é sempre o lado da humanidade. Em ano de 50 anos do 25 de Abril, é um disco para ouvir, para que se entenda que além das narrativas políticas, estes temas eram presentes na sociedade portuguesa jovem nos anos 70, com preocupações humanistas e de igualdade. É um disco de protesto.