Segundo registo fonográfico de Tom Waits, com a chancela da Asylum Records. Pot-pourri estilístico com Glenfiddich e Lucky Strike à mistura. Comme il faut!
Lower Manhattan, East Village, 1974.
Os ponteiros do relógio da 5ª Avenida anunciam o crepúsculo. O ambiente soturno e lúgubre induz o regresso a casa, mas contrariando o ímpeto inicial, continuo. A temperatura desce rapidamente com o adiantar das horas. Chego a Cooper Square e, deambulando pela cidade, a minha atenção é sugada por um feixe de luz vermelha que um letreiro de néon titubeante exorta, de jeito esparso. Leio “Five Spot Café”. À porta, uma mulher loira envergando um exuberante vestido púrpura tenta persuadir-me a entrar. Aceito o desafio prosélito, intimidado pela beleza de porte altivo. Uma neblina pardacenta não me deixa enxergar mais do que meras silhuetas abstractas, dispostas de forma aleatória, movimentando-se numa espécie de ritual de acasalamento.
Sigo em direcção ao interior do bar, e aproximando-me agora das personagens de que só conhecia a forma, sou projectado para uma das obras seminais de Edward Hopper. A solidão e a procura do confortável refúgio do álcool. Peço um puro malte, sento-me num daqueles bancos de pé alto com estofo de pele gasta e fito um vulto decadente, que se posiciona atrás de um piano de cauda. De blazer roçado e manchado de álcool, o estroina enverga uma boina que coloca estrategicamente de lado. No canto da boca resiste ainda o fragmento de um cigarro ressequido. Levanta a sobrancelha direita e a sua voz ressoa. Num tom grave e com uma sujidade que abraça e detém, fico imerso nas palavras daquela figura e na melodia dos que o acompanham.
A prosa ficcional que acabo de relatar é fruto do meu imaginário. Não a experienciei efectivamente. Nasci tarde demais para a ter vivido. Mas é assim que imagino a gravação do disco The Heart of Saturday Night de Tom Waits (vocais, piano, guitarra) e os seus bandmates Jim Hughart (Contrabaixo), Pete Christlieb (Saxofone Tenor) e Jim Gordon (bateria).
Editado em Outubro de 1974 e produzido pela Asylum Records, The Heart of Saturday Night procede o álbum de estreia Closing Time, lançado um ano antes. Na verdade, podemos afirmar com algum pundonor e jactância que um é a extensão refinada do outro. Tom Waits ensaia nestes dois primeiros registos da sua carreira o estilo confessional que viria a adoptar posteriormente e que pautaria grande parte do seu trabalho discográfico.
O álbum destila sobriedade. Sobriedade que, de resto, Tom Waits nunca tentou preservar, preferindo assaz vezes cultivar o seu estilo ébrio e boémio, mesmo quando essa era uma condição de partida e não de chegada do seu processo criativo. Fortemente influenciado pelos vultos do vocal jazz das décadas de 40 e 50, com Sinatra como figura de proa, Tom Waits pega nos pergaminhos do estilo e, sem apelo nem agravo, atira-o à lama, conspurca-o e reveste-o de um manto lôbrego. É disso exemplo a capa concebida para o álbum, cuja proximidade com a capa de In The Wee Small Hours é notória.
Destacam-se “New Coat of Pain”, tema a três tempos que inicia o disco, “San Diego Serenade”, um penoso lamento empolado por um baixo contínuo que não desgruda, “The Heart of Saturday Night”, que empresta o seu nome ao registo e bebe da iconoclastia beat de Jack Kerouac e “Fumbling With the Blues”, um ritual de sedução eivado de volúpia e fanfarronice. A cada audição a comunhão aumenta e só apetece regressar àquela Nova Iorque pré-Giuliani de quando a decadência era bela e vestia um tweed encardido.