Do jazz de valeta às valsas quebradas, na banda sonora de um excelente filme de Jim Jarmusch.
A relação de Tom Waits com o cinema é longa e profícua. Por um lado enquanto actor, embora ele diga sempre que “há uma diferença entre ser actor e representar umas coisas”; por outro, a qualidade cinemática das suas músicas são regularmente utilizadas com sucesso em filmes. Dito isto, não deixa de ser estranho que, em tantas décadas de carreira, Tom Waits tenha composto apenas duas bandas sonoras completas para filmes: One from the heart, de 1982, e Night on Earth, de 1991.
Depois de ter entrado como actor em Down by law, filme de culto de Jim Jarmusch estreado em 1986, o realizador voltou a chamar o músico para um projecto completamente diferente: Night on Earth. É uma pérola injustamente ignorada, um exercício de estilo dividido em cinco capítulos, retratando viagens de táxi em Los Angeles, Paris, Helsínquia, Roma e Nova Iorque.
Do sonho americano batido de L.A. à comédia esquizóide de Roma (cortesia do taxista Roberto Benigni), passando pela profunda e desesperada melancolia alcoólica de Helsínquia, as histórias são separadas e unidas apenas por duas coincidências: acontecem a bordo de um táxi e na mesma noite, uma noite na Terra.
Se o filme é fantástico, isso deve-se em parte também à banda sonora composta integralmente por Waits e pela sua mulher, Kathleen Brennan. Com nomes sugestivos como “Los Angeles Theme (Another Private Dick)”, “Helsinki Mood” ou “Carnival (Brunello del Montalcino)”, a esmagadora maioria dos temas é puramente instrumental. Temos pedaços de “canções” de série B, valsas quebradas, rock escuro e jazz de valeta. Temos, portanto, Tom Waits em estado puro, com a música a servir na perfeição o ambiente sempre nocturno de todo o filme. Há frases musicais recorrentes, que se vão transformando aqui e ali, com as mesmas notas de base a servirem para uma cena de condução a alta velocidade ou para um ambiente de lounge de casino, mudando praticamente apenas os arranjos.
Há apenas três canções com voz, e são verdadeiramente canções, conseguindo ainda assim integrar-se perfeitamente no conjunto de todos os temas, tanto em termos de ambiente como através da letra, suficientemente vaga mas certeira para encaixar que nem uma luva no filme. Atente-se às palavras iniciais logo no tema de abertura, “Back in the Good Old World (Gipsy)”: “When I was a boy/ the moon was a pearl/ the sun a yellow gold; but when I was a man/ the wind blew cold/ the hills were upside down“.
Não sendo um disco obrigatório na carreira de Tom Waits, é um álbum muito bem conseguido e, sendo um complemento excepcional para o filme, vive muito bem de forma isolada.