Small Change é a lamúria de um bêbado. De bar em bar, lamenta “o seu mau fígado e coração partido”, chora “aquela que escapou”, faz tatuagens e paga lap dances, tudo para afogar as mágoas. Um diamante de Waits banhado a bourbon.
Estamos em meados dos anos 70. A descer uma avenida da maldita Skid Row, Los Angeles, Tom Waits emborcava uma garrafa de rye whisky. Cambaleou entre bêbados de coração partido, junkies, prostitutas e alguns sem-abrigo até casa, onde ligou a Bones Howe, o seu produtor. “Deitei a garrafa abaixo, voltei para casa, vomitei-me todo e escrevi uma canção”, disse Waits. Howe contou o momento no livro Wild Years: The Music and Myth of Tom Waits, de Jay S. Jacobs: Waits tinha ido até Skid Row em busca de inspiração – e encontrou-a no rosto dos embriagados. “Todos os homens que estavam ali, todos com quem falei, foram ali parar por causa de uma mulher”, disse Waits.
E o que resultou daquele passeio em Skid Row pela zona mais decadente da cidade dos anjos foi “Tom Traubert’s Blues”, a primeira canção de Small Change, o seu quarto disco. Ainda se ouve o mesmo piano e blues melancólico convencional da sua primeira década de carreira, conhecidos pelos seus anos a ser editado pela Asylum, mas a voz está cada vez mais arrastada e arranhada – e no que toca à fase do alcoolismo, o protagonista-vaganbudo começa a ficar farto de estar sempre lobotomizado pela bebida. Já só quer voltar a casa, onde está o amor e a sobriedade.
A lamúria de um bêbado
O disco começa no pior lugar possível para o nosso pobre protagonista-vagabundo: completamente bêbado e longe de Nova Orleães. Wasted e wounded, como canta Waits, num lugar onde “ninguém fala inglês”. Como é costume, Waits já contou tantas histórias sobre a origem de “Tom Traubert’s Blues” que já não sabemos bem qual é a verdadeira. A mais sóbria parece ser uma noite de bebedeira em Copenhaga com a cantora Mathilde Bondo, que também confirma a história. Em março 1979, o próprio Waits disse num concerto em Sydney, Austrália, que “bebeu demasiado nessa noite.” “Esta música é sobre vomitar no estrangeiro.” Aliando a sua voz áspera e sofrida à balada do piano e cordas, com um refrão roubado à canção folclore australiana do século XIX “Waltzing Matilda”, de
A.B. “Banjo” Paterson, “Tom Traubert’s Blues” deixa-nos embevecidos – e dá o tom emocional para o resto do disco.
Como andar de bar em bar, pedindo de balcão em balcão o mesmo copo de bourbon, bebendo-o de monólogo em monólogo sobre a mesma mulher que nos abandonou, Small Change é a lamúria de um bêbado. Já no fundo de uma garrafa de scotch, em “Bad Liver and a Broken Heart” o nosso protagonista-vagabundo sofre de ter precisamente “um mau fígado e um coração partido”. “Já bebi um rio desde que me partiste todo. Não tenho um problema de bebida, excepto quando não consigo arranjar uma bebida.” E lamenta, quase como se o barman confidente fosse o ouvinte: “Éramos cá um par…”
Tom Waits é o artista perfeito para a retrospeção melancólica, o trovador nostálgico que olha para o que poderia ter sido, conformado em álcool e blues. Em Closing Time, já o tínhamos ouvido em “Martha” – “será que ela vai-se lembrar da minha velha voz, enquanto eu luto com as lágrimas? (…) Esse eram dias de rosas, poesia e prosa; E Marta, tudo o que tinha eras tu, e tudo o que tinhas era eu”. É um tema que vai acompanhar Waits durante toda a sua carreira.
Mas a noite é uma criança e há mais sítios para visitar. Noutro bar, o nosso protagonista-vagabundo senta-se ao piano e toca, com arrasto e pseudo-pregos (que não são pregos, é jazz), jurando que “foi o piano que bebeu”. “Não fui eu!” E noite adentro vai Waits, ou melhor, o nosso sujeito lírico, ora a choramingar na companhia de apenas um contrabaixo por causa “daquela que fugiu”, em “The One That Got Away”, onde acaba a fazer uma tatuagem com o nome da sua ex; ora em clubes de strip e prostitutas, vestidas em “Pasties e G-String”, numa brincadeira musical entre timbalões e gibberish , com uns dubidabadubidabadoos de Waits com fedor a álcool, que chegam a quem ouve.
Recorrendo a um 2-track stereo tape, Bones Howe explica como quis gravar “este disco da mesma forma que os discos de jazz da década de ‘50”. “Queria que o Tom tomasse as rédeas do disco, com uma orquestra e o Tom na mesma sala, a tocarem todos juntos”, disse Howe, acrescentando que era importante toda a gente “respirar o mesmo ar”. “Nunca usámos headphones uma única vez. Nem uma.”
A redenção
Não é por acaso que o tema do alcoolismo é levado ao extremo. Por altura de Small Change, com várias digressões acumuladas, Waits começa a fartar-se dos excessos do blues, das mesmas histórias, das mesmas esquinas com fedor a bourbon. Waits admite-o ao jornalista David McGee, que na altura escreveu para a Rolling Stone o seu perfil (o título foi “Smellin’ Like a Brewery, Lookin’ Like a Tramp”, letra retirada deste disco).
“Estive doente durante todo este período. De tanto andar em digressão, comecei a ficar desgastado. Viajava de um lado para o outro, vivia em hotéis, comia comida má, bebia muito – demasiado até. É um estilo de vida que está lá antes de tu chegares e és apresentado a tal. É inevitável.” Já semanas antes do disco ser lançado, Waits havia dito à revista Sounds que “não se diverte”, que está meio dormente. “Só me diverti uma vez, em 1962. Bebi uma garrafa inteira de Robitussin, remédio para a tosse, sentei-me num Lincoln 1961 azul e fui ver um concerto do James Brown”, disse.
Hoje, Waits vive com o seu amor de longa-data, Kathleen Brennan. Tal como a vida real, também o nosso protagonista-vagabundo fez uma “pequena mudança” na sua vida e encontrou o seu desfecho feliz. Depois da bebedeira, “I Can’t Wait To Get Off Work (and See My Baby On Montgomery Avenue)” é o epílogo de uma sobriedade desejada. Mas Waits tem apenas 27 anos em “Small Change” – ainda terá muita estrada pela frente.
O disco acabou por ser tão (ou mais) bem-recebido do que os seus antecessores, subindo até 89 nos tops da Billboard em duas semanas. Hoje é, nas palavras da Mojo, o momento de coroação de Tom Waits durante o período “beatnik-glory-meets-Hollywood-noir”. É sem dúvida um disco de peso na longa e rica discografia do nosso bem-amado cantautor californiano.