Um álbum de covers? Onze anos sem editar um caracol e agora vêm com o raio de um álbum de covers? Tiro ao lado, amigos: Blue & Lonesome é um grande disco de blues. Tendo em conta que o último dos Stones como deve ser aconteceu em 1972 (Exile on the Main Street, pois claro), atrever-me-ia mesmo a dizer que Blue & Lonesome é melhor do que muitos originais da banda. Passo a explicar. No blues, a interpretação é tudo. Muddy Waters pouco compôs mas a alma que punha em cada nota tornava qualquer canção imediatamente sua. Sucede o mesmo com Blue & Lonesome: enorme por todo o sentimento que colocam nestes obscuros blues de Chicago (só “I Can’t Quit You Baby” é um standard, celebrizado no primeiro álbum dos Led Zeppelin). Tudo foi gravado em apenas três dias, sem quaisquer overdubs, e essa espontaneidade transborda a cada compasso. Até a perninha que Clapton ofereceu em dois temas foi gravada in vivo, com todos a tocarem ao mesmo tempo. No blues, quando falamos de interpretação, nunca é a técnica que interessa mas sempre o feeling. Blue & Lonesome tem-no para dar e vender.
Hendrix disse um dia que o blues é fácil de tocar mas difícil de sentir. Se pensarmos bem no aforismo, percebemos que este disco não é auto-referencial por acaso. Se os Stones voltam ao blues de Chicago dos seus primeiros discos, não é só pela homenagem aos seus velhos mestres; é também porque agora sentem as coisas de outra maneira. Quando, nos seus primórdios, gravaram temas de Willie Dixon e Jimmy Reed, não nos podemos esquecer que eram putos de vinte anos a fazê-lo, verdinhos, sem qualquer experiência de vida. Agora, são lobos septuagenários. Era preciso contar de novo esta história, desta vez sob um ponto de vista diferente.
Não me interpretem mal. Eu amo os clássicos de blues que os Stones gravaram em ’64: a lascívia de Jagger em “I Just Want to Make Love to You” (Willie Dixon); o minimalismo de Watts em “Honest I Do” (Jimmy Reed); Brian Jones dando tudo na slide guitar em “Little Red Rooster” (Howlin’ Wolf); Richards fazendo a guitarra zumbir em “I’m a King Bee” (Slim Harpo). Sou o primeiro a reconhecer o seu imenso legado: foram os Stones, e não os Beatles, que puseram os brancos americanos a ouvirem blues pela primeira vez. Mas, convenhamos, alguma superficialidade na interpretação era inevitável. O bom blues tem que ser deixado a amadurecer, e os miúdos não tinham ainda marinado tempo suficiente na pipa de carvalho.
Volvidos entretanto cinquenta anos, uma coisa chamada vida aconteceu-lhes. E nem o facto de serem estrelas pop podres de ricas os salvou de caírem e de se levantarem como todos nós. Não conheço, nem quero conhecer, os meandros novelescos da coisa; mas se levaram o coração à fonte, com certeza que o cântaro algum dia se quebrou. Que puderam eles então fazer senão colar os pedaços e erguer de novo a vasilha ao peito, como todos nós? Claro que agora, quando cantam estes temas, há toda uma memória emocional a dar profundidade aos temas, as marcas onde o barro do coração um dia estalou. Se não me acreditam, ouçam a harmónica de Jagger em “Little Rain”. Não, amigos: a subtileza, contenção e poesia daquelas maravilhosas notas só podiam ser obra de um lobo velho e sofrido.
Não poderia terminar este texto sem um pouco de morbidez gratuita. 2016 tem sido um ano terrível para a música popular. Bowie, Cohen e Prince, numa grotesca conspiração, decidiram cair todos ao mesmo tempo. Oxalá os Stones, revigorados pelas suas míticas transfusões de sangue, ainda tenham muito mais discos para nos dar. Mas se a morte, mafarrica, os apartar cedo de mais, não seria Blue & Lonesome um perfeito último capítulo?