A deusa Bethânia reinou nos ventos de Iansã. É eterna, a mana Caetana. No final da tarde, Pierre Aderne, e ao cair da noite, os míticos A Cor do Som. Bela colheita, a de ontem!
Ao quinto dia do Festival Jardins do Marquês, a maior deusa baiana viva da MPB reinou no Palco Principal do recinto. Mas houve mais. Os pós-tropicalistas A Cor do Som também asseguraram presença marcante ao final da noite. Por um lado, a voz e o particular encanto da irmã de Caetano Veloso, a quem o próprio deu o nome. Por outro, os cavaleiros do som instrumental, cujo nome também foi sugerido pelo mano Caetano. Há coincidências felizes, pois claro, e ontem foi dia delas. E como em todos os dias há quatro concertos à disposição do público no Festival de Oeiras, Pierre Aderne e Diana Castro também por lá se apresentaram. No entanto, a nossa (quase) total atenção teria de ser orientada para Bethânia e para o grupo que derivou dos gigantes Novos Baianos.
A expectativa era enorme. Bethânia já não se mostrava em Portugal há cerca de quatro anos, enquanto a Cor do Som havia tocado em Cascais, no ano passado, sendo que agora vinha para apresentar, supostamente, alguns temas do seu trabalho mais recente, o Álbum Rosa.
Bethânia trouxe consigo o espetáculo Fevereiros. Há dias, no Porto, a primeira parte dessa data, no Super Bock Arena, foi feita por Pierre Aderne, que ontem também se apresentou com Mapa dos Rios, concerto pensado a meias com Moacyr Luz, conhecido homem do samba carioca, amigo e parceiro de Aderne. Muito para ver e ouvir, como se percebe.
Alterações de última hora fizeram com que os dois concertos finais trocassem horários. Bethânia começou pelas 21.30, enquanto A Cor do Som começou a tocar mais tarde, às 22.50. Era para ser ao contrário, mas a quase octogenária Bethânia terá preferido recolher-se mais cedo. Talvez possa ter sido essa a razão. É só um palpite sem importância.

À hora marcada, Pierre Aderne (familiarmente meio português, meio brasileiro) começou o seu concerto. Ao seu lado, vários músicos foram prestes no ritmo do samba, samba de roda, todos sentados (menos o contrabaixista) e assim foram até ao fim. Cinco, ao todo, contando já com Pierre Aderne. A voz fraca (sempre foi), mas charmosa do músico, e aquela roda de amigos (“a gente só pode trazer para o palco, quem pode levar para casa”) fez lembrar momentos do nosso imaginário, também entre músicos e amigos, com Vinícius de Moraes, Tom Jobim e tantas outras feras da bossa e do samba de outros e de todos os tempos. Tudo calmo, muito tranquilo, perfeito para um final de tarde quase sem vento, para o que tem sido costume, claro está. “Com Vista Pro Mar”, do mais recente trabalho do músico, é uma belíssima canção. Resulta muito bem, na sua intimidade aberta, para uma (ainda pequena) multidão que viria a ocupar todo o recinto. Canções sobre o Brasil, mas também sobre Portugal e Lisboa (a sua Rua das Pretas não pode ser esquecida), foram preenchendo o tempo do concerto, que parecia parar, estacionar na acalmia do momento, entre uma certa magia e a total realidade. Estreou ontem “Nos Ventos de Iansã”, poema feito pensando na “rainha Maria Bethânia”, e “talvez por isso o vento amansou um pouco” (Iansã é deusa dos ventos), disse Pierre. Foi um concerto bonito, elegante e poético. A música e as palavras gostam de se combinar assim, por vezes. Ainda bem. Quase a terminar, o músico lembrou João Gilberto (e depois Amália Rodrigues), quando o mestre veio pela primeira vez atuar em Portugal, cantando “Uma Casa Portuguesa”, que o baiano também cantou no seu espetáculo no Coliseu dos Recreios, nos idos anos 70. Meio desastrada, a atuação de Aderne, mas valeu a intenção. Terminou com “Mina do Condomínio”, imortalizada por Seu Jorge, mas que é da lavra de Aderne, entre outros músicos e compositores.

Ao minuto certo, a deusa apareceu cantando a antiga e bela “Gema”. Divina e diamantina presença, a de Bethânia, logo desde o começo! Pediu palmas para a voz imortal de Gal Costa e logo a seguir, “Um Índio”, soberba canção do mano Caetano. Duas pérolas (mais duas, na verdade): “Sangrando”, de Luiz Gonzaga Jr. e “Onde Estará o Meu Amor”, de Chico César. Perfeito! O vento era muito. Afinal, Iansã não arredou pé por muito tempo. “Não sabia que ia cantar numa tempestade. Mas não tem mal, não. Meu Orixá é o vento!”, disse a cantora. Voltou a Chico César com “Estado de Poesia”.
“Não sou feliz mas não sou mudo / Hoje eu canto muito mais,” versos da linda canção de Belchior (“Galos, Noites e Quintais”), foi uma excelente surpresa. Assim como “Fera Ferida”, de Erasmo e Roberto Carlos. A homenagem a Erasmo Carlos também aconteceu, e veio quente, até fervendo, com “Vem Quente que Eu Estou Fervendo” e imagens projetadas na tela de fundo do palco.
É impressionante como a voz de Maria Bethânia não muda, não muda nunca, permanece forte e suave, com uma deliciosa potência que tudo faz tremer, mas só de prazer e encantamento! Parece que toda a “mulher brasileira” encarnou intemporalmente nela. Para mais, permanece tão autêntica como sempre, nunca se desviando dos caminhos que ela própria foi trilhando, sem querer saber de modas e acessórios artísticos afins. “A música é a língua materna de Deus!”, disse Bethânia, citando Mia Couto. E está certa. Essa certeza mora nela e ela é a prova sustentada disso. Viva Maria Bethânia!
“Cálice” foi cantada em pleno delírio do público, num arrepio, mas não do frio e do vento), antes da força imensa da letra, da canção e da voz de Bethânia. Não houve “palavra presa na garganta” de ninguém. E, de repente, Bethânia quase gritou “Inelegível!”, e foi um novo delírio de palmas e palmas e palmas de teor mais humanista do que político. “Sonho Impossível” foi muito bem “encaixada” logo a seguir. Outro momento inesperado foi “Amor de Índio”, de Beto Guedes. Que coisa bonita! “Todo amor é sagrado”, convém sempre não esquecer. “Negue” não poderia faltar à festa, até porque “ali onde eu chorei, qualquer um chorava”, como se canta em “Volta Por Cima”. Como resistir a tudo isto?, a esse vendaval de temas eternos, como? Só somando outros, como “Purificar o Subaé”, tema maravilhoso de Alteza, de 1981. Ou “Reconvexo”, que mesmo com imprecisões na letra, resultou lindamente, entrecortada com “Viola, Meu Bem”, do maldito álbum do mano Caetano, Araça Azul. E tudo terminou com “Tá Escrito”. Foi com esse soberbo samba que Maria Bethânia saiu do palco, embora por pouco mais de um minuto, voltando para o encore do costume. Foi lindo ouvir “A Filha da Chiquita Bacana” misturada com “Chuva, Suor e Cerveja”. Perfeito final! Ou quase, porque Bethânia voltou para que o Ministro da Cultura lhe entregasse a Medalha de Mérito Cultural. Em Oeiras, pouco depois, cheirou a Lisboa, quando cantou o célebre tema de Amália Rodrigues, finalizando, agora sim, com mais do que clássico “O Que É, O Que É?”

A Cor do Som começou logo de seguida e estourou com “Zanzibar” e “Zero”. Foi uma festa de misturas: Hendrix com Beatles e trio elétrico, tudo comandado pela guitarra baiana de Armandinho. Prog-rock com samba e baião. Vale tudo com A Cor do Som! “Frutificar”, clássico da banda, fez parte do alinhamento de ontem, e em boa hora foi escolhida. O tema é do grande Mú Carvalho, que se entregou às suas teclas compenetradamente. Tema complicado, exigente, meio rick wakemaniano. Prog-tropical de excelência. Depois, “Swingue de Menina”, com lembrança de Moraes Moreira, parceiro e amigo de todos em palco. “Semente do Amor” foi outro tema feito em parceria com o falecido Moraes. Ciro Cruz, baixista ontem ao serviço, substituiu o enorme Dadi, que anda com Marisa Monte no outro lado do mundo, em digressão. Seguiu-se “Sapato Velho”, com o português João Mendonça, convidado da banda para cantar esse tema, celebrizado pelos Roupa Nova. Caetano Veloso foi lembrado com uma versão de “Beleza Pura”, que A Cor do Som sempre tocou ao vivo, chegando mesmo a gravá-la em disco, no longínquo Geração Pop, de 1994. E a noite findou com “Dentro da Minha Cabeça” e “Zanzibar”, que havia sido tocada quase no início do concerto.
O primeiro dia de julho foi grandioso. O Festival dos Jardins do Marquês acertou na muche!
Fotografias cedidas por World Academy
Obrigado, caro Ademaramncio. Agradeço este comentário, assim como todos os outros. É bom ser lido no Brasil. Abraço transatlântico! Continue seguindo o Altamont.
Fico feliz em saber que a música brasileira é tão conhecida e amada em Portugal,o autor do texto conhece minúcias de nossa amada MPB.