The Basement Tapes não é um disco de Dylan, é o Santo Graal. Durante décadas, devotos coleccionadores partiram na demanda das míticas gravações caseiras com os The Band, regressando sempre de mãos vazias. Quarenta e sete anos depois, pudemos finalmente ouvir a relíquia original. Contemos a história de um dos álbuns mais lendários e cobiçados da história da música pop.
1965 fora o ano da revolução eléctrica de Dylan. Há muito que Bob se sentia usado pela esquerda, acorrentado a um estatuto que nunca procurou: o de “porta-voz de uma geração”. Robert Zimmerman queria ser apenas ele próprio e não o raio de um cão amestrado da folk engajada. Para o diabo mais às camisas-de-força estéticas e ideológicas que lhe queriam impingir. Arte e ideologia nunca casaram bem. Ou um artista é um animal solitário, fiel apenas aos seus instintos, ou não é artista coisíssima nenhuma.
Em Março, põe pela primeira vez os cotovelos na mesa com o álbum Bring It All Home, cujo lado A é composto por temas eléctricos; uma blasfémia para os moralistas da folk. Os dois álbuns seguintes, Highway 61 Revisited e Blonde on Blonde, levam mais longe a heresia, suprimindo os temas acústicos e carregando ainda mais nos decibéis. Nos concertos de então, Dylan preferia alternar os dois registos, talvez para acentuar a provocação. Começava de mansinho, só viola e harmónica, para deleite do público da velha guarda; até que, quando ninguém estava à espera, a banda de suporte entrava em palco e o mais sujo e ruidoso rock’n’roll alguma vez tocado à superfície do planeta quase fazia explodir as colunas. As reacções de escândalo foram míticas: apupos; impropérios; Pete Seeger, no festival de Newport, ameaçando que cortava os fios eléctricos; e o célebre grito acusatório, “Judas”, arremessado num célebre concerto em Manchester.
Beatles, Stones e Dylan eram agora a santíssima trindade da contracultura. Se detestara no passado ser uma marioneta da folk comprometida, não era com mais agrado que encarava o seu novo estatuto de estrela pop. Tudo se exigia de Dylan: álbuns, entrevistas, programas de televisão, livros, concertos, soluções para os problemas da humanidade, tudo ao mesmo tempo… A panela de pressão na cabeça de Dylan estava prestes a estourar. Mas Deus escreve direito por linhas tortas. Em 29 de Julho de 1966, um acidente de mota oferece-lhe o pretexto perfeito para desaparecer do mapa. Convalesce numa casa no campo perto de Woodstock, saboreando um longo e merecido exílio.
Neste período quase monástico, a única concessão que fez ao mundo foi gravar umas quantas demos das suas novas canções, para as emprestar a outros intérpretes. Os seus leais companheiros de estrada- os The Hawks, futuros The Band- foram convocados mais uma vez. Alugaram uma casa de madeira na vizinhança, toda pintada de cor-de-rosa, a mítica “Big Pink”. Dylan exigiu apenas uma condição à Colombia Records: que as gravações não fossem feitas no ambiente asséptico de um estúdio profissional, mas sim na lânguida tranquilidade das suas próprias casas. Os primeiros temas foram gravados na casa de Dylan mas o grosso do trabalho foi feito na cave da “Big Pink”. As famosas Basement Tapes tinham acabado de nascer: domésticas, íntimas, mágicas…
Das dezenas de demos gravadas, catorze foram entregues à editora, e distribuídas por uns quantos artistas; Peter, Paul and Mary, Manfred Mann e os Byrds foram alguns dos felizardos. E a história destas bobinas teria terminado aqui não fora a sua circulação clandestina até caírem no regaço da imprensa musical. Alguns jornalistas, surpreendidos pelo brilho das canções, escreveram inflamados artigos nas revistas da especialidade, reclamado a sua urgente publicação. Dylan não cedeu, mas o apetite do público pelo fruto proibido tinha acabado de nascer.
Em Julho de 1969, foi publicado ilegalmente uma cópia espúria de alguns temas, o primeiro bootleg da história da música. O disco, conhecido por Great White Wonder, vendeu a rodos, para grande irritação de Dylan. Em Julho de 1975, Bob autorizou, por fim, a publicação das Basement Tapes. Mas o disco, longe de constituir um retrato fiel das famigeradas gravações, adulterou-as com desnecessários overdubs, acrescentou extemporâneas canções dos The Band, e deixou de fora alguns dos melhores temas de Dylan. A mão só seria emendada em 2014 quando foram publicadas todos os 139 temas originais, todos na sua nudez primordial. Foi preciso quase meio século para o mundo conhecer a versão definitiva das míticas The Basement Tapes.
Nas famosas fitas, ouvimos um novo Dylan, em ruptura com o rock dos seus álbuns anteriores, e de costas voltadas para o psicadelismo então dominante. Se o rock psicadélico faz um corte abrupto com a tradição, mergulhando de cabeça na espiral do futuro, o Dylan das Basement Tapes faz justamente o oposto: convoca o passado colectivo, procurando inspiração nos velhos clássicos de country e blues. Avesso às modas e novas tendências, Dylan reinventa a velha tradição musical americana, passando assim o testemunho para a malta nova. Funcionando como elo de ligação entre gerações, Bob mantém acesa a chama da tradição; caso contrário, esta tornar-se-ia inerte, pó esquecido nas prateleiras dos museus. Em 1967, no colorido “summer of love”, nada era mais anacrónico do que o country das Basement Tapes; mas os Beatles gravariam “Don´t Pass me By” em 1968, e os Stones fariam furor com “Honky Tonk Women” em 1969. Mais uma vez, Dylan apontava o caminho para os demais. O velho archote da tradição estava mais aceso do que nunca.
O que mais ressalta nestas velhas bobinas é a sua maravilhosa intimidade. Não nos podemos esquecer que estas gravações nunca foram feitas com o propósito de serem um dia publicadas, pelo que tudo tem uma incrível espontaneidade. É como se fôssemos intrusos, escondidos por detrás das cortinas da célebre cave, assistindo ao momento mágico em que as canções ganharam vida. Neste contexto, o seu som cru, sujo e caseiro não é um defeito mas uma virtude, o selo inequívoco da sua autenticidade. O género lo-fi acabadinho de nascer.
Os ouvintes mais atentos repararão também noutra mudança: quase todos os temas das Basement Tapes têm refrão, estrutura raramente utilizada na sua obra anterior (“Like a Rolling Stone” é uma honrosa excepção). É preciso também não esquecer que os The Band fizeram toda a sua carreira a partir das cinzas das Basement Tapes. Houve, da parte de Dylan, uma preocupação quase didáctica em introduzir os seus amigos num mundo que desconheciam por completo: o velho cancioneiro country. Sem esta aprendizagem, álbuns brilhantes como The Music From Big Pink e The Band nunca teriam existido. Mas todas essas peculiaridades seriam irrelevantes se não houvesse grandes canções originais a validar o disco. Acontece que algumas das melodias mais bonitas de Dylan assomam neste saboroso álbum. É preciso ter muita segurança em si próprio, e um olímpico desprezo pelo resto do mundo, para gravar temas geniais como “I’m not There”, “I Shall be Released” e “This Wheel’s on Fire” e não os publicar.
Ainda bem que não os editou então. Tivera-o feito, The Basement Tapes seria apenas mais um grande disco de Dylan, e não a sagrada relíquia em que se tornou.
Longa vida ao mestre Dylan.