Led Zeppelin II não é apenas a obra-prima da banda. É o melhor disco de sempre. ‘O padrão que eu a ser ditador gostaria de impor’…
Tinha doze anos, para aí, quando o ouvi pela primeira vez, numa cassete gravada pelo meu irmão, com mais sete anos para me atalhar caminho, bendita providência. Ainda não tinha aparelhagem, nem walkman, escutei-o num gravador manhoso que usava para os jogos do spectrum, e mesmo com aquela roufenha fidelidade a sua pujança rock’n’roll acertou-me em cheio no estômago. Traindo a minha geração, o disco que mais ouvi vinha de um tempo longínquo, anterior a mim. Mas que querem? Para mim, soava-me novo e perigoso, acendendo qualquer coisa aqui dentro. Não me interpretem mal, quando pouco depois os Nirvana rebentaram, e a enxurrada de rock alternativo se abateu sobre nós, também eu me banhei feliz na contemporaneidade. Mas não há amor como o primeiro, Led Zeppelin II foi o meu Nevermind, o pecado original…
Chamá-lo disco é ofensivo, soa a burocracia fonográfica; a relação que eu tenho com ele não é apenas estética, é afectiva, mais um velho e leal amigo do que um inerte longa-duração. Com ele me fiz gente, com ele tive filhos, com ele vou envelhecendo, enquanto o bandalho, qual Dorian Gray do heavy rock, permanece sempre fresco e jovial.
Conheci entretanto centenas de álbuns teoricamente superiores, com letras mais sofisticadas e uma aura mais cool para a intelligentsia indie, mas a minha opinião não mudou um milímetro, continuando a ser, para os meus humildes ouvidos, o melhor disco de sempre.
Mas deixemo-nos de exclamações autobiográficas, que só nos distraem do essencial: a música propriamente dita e o contexto em que ela surgiu.
A banda já tinha dado que falar com o seu álbum de estreia, de Janeiro de ’69, o seminal Led Zeppelin I, levando a Atlantic Records a pressioná-los para que saísse um novo disco ainda antes do Natal. Apesar das digressões constantes – pelo Reino Unido e, sobretudo, pelo filão mais apetecível dos Estados Unidos -, conseguiram lançar o capítulo seguinte no prazo reclamado: em Outubro de ’69, Led Zeppelin II já estava nas lojas. O que significa que foi concebido nas nesgas que ia havendo entre os concertos, escrito à pressa em quartos de hotel, gravado aos bochechos numa mancheia de cidades (Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Vancouver), por vezes em estúdios manhosos que nem headphones tinham. Que a obra-prima dos Zep tenha nascido em condições tão adversas permanece um mistério; ou talvez tenha sido justamente esse corropio a aguçar a sua espontaneidade vibrante. É difícil captar num pedaço frio de vinil a vitalidade que uma banda revela em cima de um palco mas este disco consegue-o inteiramente.
Led Zeppelin II não anda longe das coordenadas estéticas lançadas no primeiro tomo; simplesmente, tudo agora é aprimorado, tudo mais solto e inspirado.
Led Zeppelin I já tinha um peso inaudito para a época mas nada tinha preparado o mundo para a violência do riff de “Whole Lotta Love”, uma bomba de napalm para os ouvidos “virgens” de então. É neste clássico que acontece um dos momentos mais belos da história do rock: após uma psicadélica deambulação de sexo e feedback, sempre a acumular tensão, a guitarra de Page (com uma textura inacreditável!) finalmente extravasa, naquele brilhante diálogo “duas pancadas na porta, resposta tremenda da guitarra-solo”, até o tema desembocar de novo no poderoso riff inicial. O milagre da música em todo o seu esplendor!
“Baby, I’m Gonna Leave You”, do álbum de estreia, havia explorado outro ex libris zeppeliano: os seus jogos de contraste entre delicadeza e explosão (“luz e sombra”, nas palavras do próprio Page). Porém, Led Zeppelin II apura o cozinhado. Temas como “What is and Should Never Be”, “Ramble On” e “Bring It On Home” são exímios nessas transições entre leveza graciosa e peso estrondoso.
Os elementos folkie desta mágica equação, acústicos ou de uma sauve electricidade, tornam risível o lugar comum, tantas vezes repetido, dos Led Zeppelin enquanto pais do heavy metal, rótulo simplista que a banda sempre renegou. “A mais pesada das bandas folk”, como um dia o road manager Richard Cole o enunciou, parece-nos uma descrição bem mais apropriada…
É certo que não inventaram o metal, mas todo o rock musculado, e centrado em riffs, deve-lhes quase tudo. O disco de estreia já tinha riffs possantes e memoráveis (“How Many More Times”, “Communication Breakdown”); Led Zeppelin II é mais do que isso, um festim olímpico de riffs maiores do que a vida: “Whole Lotta Love”, “Lemmon Song”, “Heartbreaker”, “Moby Dick”, “Bring It On Home”! Uma vez ouvidos, ficam alojados no cérebro para sempre…
E de tanto se falar do pseudo-heavy metal dos Led Zep (os Sabbath, esses sim, são os verdadeiros padrinhos da coisa), esquece-se demasiadas vezes do seu incrível groove. Led Zeppelin I tinha apontado o caminho, recorde-se o swing inacreditável de “Good Times Bad Times”. A rodela seguinte sobe em muito a parada. John Paul Jones é o principal culpado: nunca como em Led Zeppelin II o seu baixo fora tão inventivo, tão destacado na mistura e tão deliciosamente sincopado. Em “Lemmon Song”, Jones é mesmo a estrela da companhia, ofuscando o próprio Page com o seu baixo irrequieto e pululante.
Claro que John Paul Jones não detém o monopólio do groove. “What Is and What Should Never Be” ilustra-o bem, quando a velhaca da guitarra de Page vai passeando entre a coluna esquerda e a direita, e depois começa a sincopar com as cordas presas, enquanto Bonham dá uma ligeira batida num gongo que fica a pairar, até que a voz de Plant entra a rasgar com um swing do outro mundo. Todos amavam a Motown e James Brown, todos põem a sua colherada, e é nesse conjunto que o groove fermenta.
Os dois primeiros discos são repassados de blues, mas enquanto no primeiro se sente uma reverência respeitosa pelos mestres do passado (o caso mais flagrante é o de “You Shook Me”, demasiado colada ao original de Muddy Waters), em Led Zeppelin II há uma pulsão modernista mais radical, reinventando profundamente a linguagem do blues. “Whole Lotta Love” pode ser vagamente inspirada em “You Need Love”, de Muddy Waters, mas a transformação é tão drástica que se torna irreconhecível face ao original. “The Lemmon Song” não vai tão longe, sendo descaradamente roubada a “Killing Floor”, de Howlin’ Wolf, mas o arranjo é inteiramente novo, com um riff irresistível no centro de tudo, e uma ambiência mais suja e ameaçadora. Mesmo o prelúdio de blues rural de “Bring It On Home”, açambarcado a Sonny Boy Williamson II, nada mais é do que uma breve homenagem, depressa desembocando no tema original propriamente dito, com o seu riff assassino e explosivo. Claro que foi feio as fontes não terem sido creditadas (processos judiciais corrigiriam mais tarde a flagrante injustiça), mas os roubos dos Zep foram sempre inventivos – tomara a pop contemporânea ter mais ladrões assim…
Todos os quatro magníficos são músicos de excepção e todos têm o seu momento para brilharem em Led Zeppelin II: o baixo de Jones reinando em “Lemmon Song”, o solo de Page (tão exibicionista como encantador) em “Heartbreaker”, a voz orgasmo de Plant no interlúdio de “Whole Lotta Love” e o solo de Bonham no instrumental “Moby Dick”, a única mancha, a meu ver, neste disco. Talvez a falha seja minha: odeio solos de bateria, aborrecem-me de morte. Mas ainda bem que o disco tem esta pequena imperfeição. Como uma mulher linda com um sinal na cara…
Quem estiver de má fé poderia argumentar que as letras clichê de Plant também diluem o primor do álbum. Não tenho essa opinião. O essencial é sempre a beleza da música e a voz de Plant, torturada e lasciva, tem-na em abundância. Uma boa letra é um bónus sempre bem-vindo mas não mais do que isso. Até no caso do eloquente Dylan é a sua voz despenteada e cool que diz quase tudo.
Led Zeppelin II chegaria depressa a número um, destronando Abbey Road (o último álbum gravado pelos Beatles e para muitos o seu melhor). É difícil não vermos neste facto a passagem de testemunho dos mais velhos que dominaram a década de sessenta para os mais novos que governariam a década seguinte.
Vinte anos depois de ter sido lançado, um puto dos subúrbios ouviu-o. A sua vida nunca mais seria a mesma. Thank You…
Excelente disco e excelente texto