
Samuel Úria. O habitual artista que dispensa apresentações, mas não o artista habitual. Também habituais são os bons e inesquecíveis concertos na pequena sala situada no número 59 da Rua da Barroca, no Bairro Alto, em Lisboa. Ora, que melhor combinação que um dos melhores músicos portugueses da última década a tocar numa das melhores salas de concertos do planeta?
Os dados estavam lançados, a profecia escrita. No pátio interior da Galeria Zé dos Bois, o público aguardava ansiosamente o abrir de portas, que não foi demorado. De um ápice, a sala encheu-se de boa gente para ouvir cantar e acompanhar, cantando, o disco de estreia O Caminho Ferroviário Estreito, já de há 11 anos. Quinze músicas, cada uma introduzida por insólitas histórias, levaram a audiência ao delírio e à emoção, antes de ser agraciada com um encore bastante composto.
O concerto começava, então, com “Valsa do Afonso”. Acompanhado por uma trupe de talentosos companheiros, de outros projectos mas filhos da mesma mãe FlorCaveira, Samuel Úria lentamente começou a encher de beleza e dança o palco e plateia, cuja distinção era pouco perceptível. Mais adiante, pedia ao público para “erguer copos de cerveja fictícios” e entoar em coro a valsa que se fazia hino. De seguida, “Estevão” dava entrada às constantes mudanças na formação da banda, que ia trocando de elementos e instrumentos. Jónatas Pires (Pontos Negros) solava sem medo, estava entre amigos. E a colaboração dos ouvintes era novamente exigida, qual serenata à volta da fogueira.
“Dia Perfeito” invocava Coimbra, “capital do rock ‘n’ roll”, em conjunto com o “malogrado Lou Reed” (“Perfect Day”, alguém?). Histórias iam-se contando pelo caminho que, apesar de estreito, se fazia longo e nada pesaroso. Miguel Sousa (Guel) incentivava ao bater de palmas quando fosse a vez de Tiago Cavaco (ou o Artista Anteriormente Conhecido como Tiago Guillul) cantar. “Senhor Feijão” contava o ciclo da vida, como havia sido escrito para miúdos da primária a quem Úria certo dia teve que dar uma aula. Feito professor e fazendo do público turma, todos cantavam e celebravam em conjunto a vida e a música como forma de a manifestar.
Os corações começaram a bater em “Deus Também Anda de Comboio”, em que, dos carris, se fez calor divino por humanos. E depois de Lou Reed, Johnny Cash era também lembrado noutro hino de fé, que antecedia “O Meu Primeiro Amor Adolescente”, balada peculiar que, no meio de mais uma história caricata, provou que a amizade e o amor são coisas compatíveis. A veia rock e barulhenta (no bom sentido) invadia a Galeria Zé dos Bois com “Os Ratos” e “Ovelha Perdida”, fazendo a cama para a “Stairway to Heaven” versão bossa-nova que Úria compôs no alto dos seus 15 anos e que, quase vinte anos depois, foi tocada com Manuel Fúria: “são precisos dois pra dar um abraço”, cantavam os músicos quase-homónimos. “Socorro”, cantiga gritante e à beira de um ataque de nervos, seria o antecedente de “Tim”, “não o Tim dos Xutos”.
Eis que entrava em palco uma das figuras mais inesperadas da noite: Gonçalo Gonçalves. O pseudo-sex symbol cantava as “Coisas do Coração” com uma postura de cantor romântico sensual, de decote gigante e cabelo para trás, ouvindo-se ao longe os gritos e gemidos das meninas ingénuas e adolescentes que o queriam para seu. Já perto do suposto fim, a tardia apresentação do disco findava com “Violência na Televisão”, lenga-lenga em uníssono que rapidamente foi decorada por todos e cada um.
De palco vazio, Samuel Úria regressava a seguir, por entre assobios e berros apaixonados, para tocar a segunda parte do concerto. Saltando no tempo para 11 anos depois, a festa continuava com Nem Lhe Tocava e O Grande Medo do Pequeno Mundo. A obrigatória “Teimoso” e a cheia-de-brilho “Espalha Brasas” faziam das pessoas e pedras um coro enorme que a todo o segundo puxava a curiosidade aos transeuntes que pela janela passavam e não resistiam a ficar e admirar. A entrada de Márcia em palco para o dueto de “Eu Seguro” pôs um sorriso geral na sala, que se derretia sem vergonha e cedia à magia do par de vozes que massajavam todos os sentidos do corpo. A energética “Forasteiro” continuava o legado do último álbum, que terminava com “Em Caso de Fogo”, novamente com Gonçalo Gonçalves.
O final definitivo ficaria a cargo de “Barbarella e Barba Rala”, um dos momentos mais belos e arrepiantes da prolifíca carreira do co-fundador da FlorCaveira. Assim terminou a noite que daqui a uns anos todos se lembrarão, onde Samuel Úria desceu à terra pra tomar a forma de Flautista de Hamelin e nos educar, através da canção, para as virtudes e vicissitudes da existência humana.
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(Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo)