Samuel Úria e Benjamim são dois dos melhores escritores de canções da nossa geração e em breve vão apresentar-se ao vivo, em conjunto. O Altamont esteve com eles numa pausa dos ensaios para uma agradável conversa.
Altamont: Sabemos que a vossa relação é de amizade e já começou há algum tempo. Como é que se conheceram?
Benjamim: Estávamos no Frágil.
Samuel Úria: Por acaso, conheci o João Só na casa de banho do Frágil, que me conhecia do MySpace. E contigo foi também através do MySpace. Mas quem faz o elo é o Fachada. Há uma história que precede isso. Eu na altura estava a viver em Évora e trabalhava lá numa agência de comunicação e publicidade e tinha uma colega designer que era a Rita de Braga, que tinha sido uma das primeiras namoradas do Fachada. Aliás, a primeira viola braguesa do Fachada chamava-se Ritinha por causa da namorada de Braga e ela disse-me: ”Há um gajo que eu conheço, um ex-namorado, não queres ouvir umas coisas dele?” e eu fui ouvir. Fiquei muito surpreendido com as coisas que ele andava a fazer, algumas já contigo na altura. E foi aí que que travei conhecimento com o Fachada e depois mais tarde ele é que…
Benjamim: O Fachada é que me mostrou o MySpace do Úria e, basicamente, eu fiquei grande fã.
Altamont: É uma relação fruto das redes sociais?
Samuel Úria: O MySpace era o Tinder dos músicos. (risos)
Altamont: E como é que surgiu a ideia de colaborarem juntos? Já é um desejo antigo, visto que se conhecem há muito tempo?
Benjamim: Colaborar já é uma coisa que, quando nós vamos sair à noite, falamos: “Temos de fazer alguma coisa e tens de ir lá ao Alvito gravar qualquer coisa”. Tem sido sempre assim, um bocado no ar.
Samuel Úria: E nós, durante muitos anos, cruzávamo-nos em palco com o João Coração ou com a Márcia…
Benjamim: E no Giro da FlorCaveira… Ele já fez perninhas em concertos meus e eu já cantei em concertos dele. Até já fui oficialmente convidado de um concerto em Benfica, também já fui oficiosamente convidado num concerto teu em Ílhavo…
Samuel Úria: Essas coisas oficiosas aconteciam muitas vezes quando estávamos a tocar no mesmo sítio e não era incomum estarmos nos mesmos festivais. Eu conheço canções dele, ele conhece canções minhas e aparecíamos sempre em palco, ou invadíamos o palco, então havia sempre esse lado, o oficioso. Até que, durante a pandemia, o Paulo Salgado, meu manager, estava a organizar uma coisa chamada “Conta-me uma canção” que juntava músicos e era um evento de conversa em que a música vinha por arrasto. O Paulo também é amigo do Luís e é uma pessoa com quem convivemos socialmente…
Benjamim: …também nos une o Sporting, a mim e ao Paulo Salgado, uma vez fomos ver a Final da Supertaça.
Samuel Úria: Podes dizer o resultado.
Benjamim: Não me lembro do resultado.
Samuel Úria: O Benfica ganhou 5-0.
Benjamim: 5-0?? Olha, apaguei.
(Risos)
Samuel Úria: O Salgado lembrou-se de juntar-nos, pareceu-lhe uma dupla viável para fazer esse “Conta-me uma canção”. E foi aí que nós começámos a trabalhar de uma forma já mais…. Aliás, eu acho que é a primeira vez que nós trabalhámos mesmo, preparámos alguma coisa juntos, nos outros concertos a preparação era no ensaio de som. E antes disso há a história de “Os Raros”.
Altamont: “Os Raros” foi antes ou depois do “Conta-me uma canção”?
Benjamim: Eu tinha lhe enviado um esboço de uma música que tinha a parte da harmonia de “Os Raros”, uma melodia ao piano com um “na, na, na, na, na, na”, para a qual eu não tinha letra absolutamente nenhuma, era uma ideia, uma coisa que há muito tempo não conseguia acabar. Não tinha nem sequer uma palavra e quem melhor do que Samuel Úria para escrever a letra dessa canção. Isto já foi há dois ou três anos, o Samuel aceitou e depois nunca mais… Também nunca mais lhe perguntei, nem nunca falámos sobre o assunto. E quando estávamos em Alvito a preparar o “Conta-me uma canção”, estava tudo a correr tão bem que comentei que seria bom acabar aquela música que tinha enviado, e ele responde “Ah, eu tenho a letra já feita”, eu pedi para ele me a enviar o que ainda demorou um bocado.
Samuel Úria: Na altura tinha letra a mais.
Benjamim: E depois ele mandou-me a canção já depois de ter feito o “Conta-me uma canção”, e a partir daí acho que foi tudo muito natural, muito imediato. Mal eu recebi a letra, bom, passados dois dias, li a letra e não tive opinião. É sempre chocante quando se recebe uma letra, seja ela qual for, para uma ideia musical que se tem há tanto tempo e que, portanto, qualquer coisa pode aparecer. E eu esperei dois ou três dias para me sentar, lembro perfeitamente de sentar-me no meu estúdio com o telefone em cima da secretária. Foi na guitarra que toquei a música, e comecei a letra a partir do telefone e pensei “uau! Adoro esta letra, adoro! Adoro isto. Quero mesmo gravar.” Falei com ele, e insisti para gravarmos a canção e a partir daí, acho que ganhámos uma razão mais profunda, mais íntima, para podermos fazer um concerto juntos. Mesmo a maneira como nós agora abordamos as canções um do outro, canções que já são mais antigas, parece que é quase com mais propriedade. É quase como se tivéssemos uma banda e reinventá-las com tanta liberdade dá imenso gozo.
Altamont: Vocês acabam por partilhar o mesmo público, normalmente quem é fã de Samuel Úria é fã de Benjamim e vice-versa.
Benjamim: Eu acho que deve haver pessoas que gostam do Sami e não gostam de mim, acho que existe imenso cruzamento público, mas deve haver pessoas que gostam muito de um e não do outro.
Samuel Úria: Acho que em Lisboa e no Porto os públicos são muito semelhantes. Embora, depois tu tenhas um lado, um pouquinho mais clubbing, sobretudo no teu último disco, que, se calhar, vai para um universo que já foge do meu público.
Benjamim: Eu acho que, obviamente, há muito público que é comum, mas é engraçado também poder surpreender o público do lado de lá, que é o público que se calhar segue muito o Samuel ou a mim e pode não estar tão sintonizado com o outro.
Samuel Úria: E até pode acontecer pessoas que nunca tinham ligado nem a um nem a outro, e agora com a junção pode ter essa curiosidade.
Altamont: E nunca houve rivalidade “Ah, quando eu entro em palco gritam mais” e coisas do género? Nunca mediram os aplausos como se fazia naqueles programas de TV?
(Risos)
Samuel Úria: Não, mas podemos fingir que sim, que há. A picardia tem sempre piada.
Benjamim: O Samuel, enquanto Samuel Úria, existe há muito mais tempo do que eu e tenho uma relação de aprendiz com ele, e também em relação à escrita. Eu escrevia em inglês quando o conheci e havia uma admiração imensa por ele, e pelo Fachada também, de quem eu sou muito íntimo há muitos anos. Sinto que eu próprio cheguei a este comboio de cantar em português bastante mais tarde, portanto, a minha relação com ele é uma relação de admiração. Já disse isto em muitas entrevistas, e é verdade, quando eu estava a escrever o meu primeiro disco havia uma insegurança enorme. A primeira vez que estás a escrever na tua língua, o que parece ridículo, mas a verdade é que estás muito mais exposto do que estás a criar uma personagem que canta um bocado em código, apesar de ele cantar em código. (Risos). Mas eu pensava muitas vezes nele, pensava muitas vezes no Fachada e noutros escritores de canções que eu admiro, um bocado a tentar estar a par com os meus pares, ou com aqueles que eu ambicionava que fossem os meus pares. Houve uma coisa engraçada ontem quando estávamos a tocar a “Volkswagen” e tu disseste uma coisa que me deixou muito feliz “Esta é das tuas letras que eu gosto mais”.
Samuel Úria: Eu tinha ficado com muita pena de não a termos tocado antes porque eu gosto muito dessa letra.
Benjamim: Foi engraçado porque foi das primeiras canções que eu escrevi em português e eu lembro-me perfeitamente dessa fase. Portanto, não há de todo rivalidade há apenas admiração e há um contexto, ele tem mais discos que eu e tem uma carreira mais longa que a minha.
Samuel Úria: Sim, mas com o Luís tenho essa relação também. Por exemplo, há uma responsabilidade grande quando tu percebes que é um tipo que é essencialmente um escritor de canções, mas que pensa como um produtor e eu muitas vezes sou preguiçoso quando estou a trabalhar as canções. Não é uma questão de arranjos, mesmo em relação a arranjos/som. E depois há “gajos” como o Luis, que às vezes me embaraçam e me obrigam, porque há malta que está a fazer o mesmo que eu, que são parceiros, mas que estão um passo à frente a pensar na maneira como as canções depois são gravadas. Eu penso muito já em palco, penso muito já em interpretação e penso menos no laboratório de estúdio.
Benjamim: Mas todos nós temos características diferentes. Contigo é mais o lado de frontman, da interpretação de palco, o lado da presença de palco.
Samuel Úria: Mas sabes que é um embaraço perceber que a descoberta da parte laboratorial do estúdio faz parte do âmago das canções e é divertido. Também é super cansativo, às vezes uma pessoa deseja a morte, por exemplo, “Já não posso ouvir isto”, mas no fim dizemos “Vamos lá voltar”. É como quando os pimentos “padron” eram picantes, já não são, comíamos um e estávamos quase a morrer, mas depois continuávamos a comer.
Benjamim: Há um processo de aprendizagem, um processo de aprendizagem mútua e de crescimento, e estes processos são muito enriquecedores, até para não ficarmos uns velhos daqui a uns anos, presos na mesma coisa. Eu acho que faz parte de um processo de expansão do horizonte.
Samuel Úria: E é fixe se acontecer sem (isto parece uma cena muito de My Little Pony ou Care Bears), que é isto acontecer num ambiente em que não é uma questão de rivalidade, e se este gajo está a fazer isto deixa-me cá copiar para ser melhor que ele e ter mais sucesso, não é mesmo. Eu tenho muito prazer em roubar coisas ao Luís, tenho prazer em estar a tocar as canções dele. Estou farto de dizer isto esta semana, que há um lado que se perde quando estás a tocar as tuas coisas, porque às vezes é um esvaziamento que já escapa ao puro prazer musical, como tens na adolescência e estás a aprender a tocar um instrumento, estás a aprender a tocar uma canção, estás a aprender a escrever canções, a copiar o que os outros fazem. E esse lado eu estou a recuperar a tocar canções do Luís que eu conhecia, não como autor, claro, mas conheci como fã, por gostar. Poder estar a tocar uma coisa onde eu não pertenço, mas estar lá com esse prazer adolescente de quem se apodera das coisas por gostar delas. Isto é mesmo um dos melhores elementos da preparação dos concertos.
Altamont: É visível a admiração que têm pelo trabalho um do outro. Qual é a canção do outro que gostavam de ter escrito?
Samuel Úria: Outro dia escapei à resposta, mas depois tive de confessá-la, é a “Vias de Extinção”. Acho que é uma das grandes canções da última década em Portugal e lá está, também é uma daquelas canções que eu gostava de escrever porque para conseguir escrever essa canção, embora se perceba muitas referências de muitas coisas nessa canção, para escrevê-la tinha de ter capacidades que não tenho.
Benjamim: Estás a ser modesto.
Samuel Úria: De todo, é uma canção que vive muito dos teclados e para a ter escrito tinha de dominar o piano, que é uma coisa que eu não domino. Logo por aí, mesmo que a canção não fosse tão boa quanto é, já era uma canção que eu gostava de ter escrito.
Benjamim: E há muitas canções tuas que era impossível eu ter escrito, há valências do ponto de vista da escrita, do ponto de vista harmônico e até puramente musical. Acho que o sítio de onde vens, da escola da canção que tens, até da tradição protestante, que eu acho fascinante a maneira como se vive a música e a relação com a canção que é muito envolvente, e a comunhão. Isso está muito patente nas canções dele e que é muito difícil de emular. Não é uma coisa que consigas fingir. Há muitas canções do Samuel que eu gostava de ter escrito. Há muitas canções do Samuel que influenciaram a minha música. Eu disse a “Barbarela”, é o clichê porque foi a primeira e eu acho que é uma canção que me transformou quando a ouvi. As canções dele vêm noutro sítio e para mim há um lado americano, com o qual eu também me identifico. De repente, ver alguém a cantar assim em português a fazer esta música em português e isso para mim foi uma revolução muito grande. É difícil escolher uma canção porque são muitas: “Carga de ombro”, “Repressão”, “Fusão”, quando estamos a tocá-las eu gostava de tê-las escrito a todas.
Altamont: A ideia de se apresentarem ao vivo agora, para além do “Conta-me uma canção” como surgiu? Já que tinham a canção queriam rodá-la ou até tem a ver com esta questão de quererem tocar as músicas um do outro?
Samuel Úria: Acho que veio muito por arrasto de “Os Raros”. Havia uma canção, e essa canção consolidou uma coisa que fazia parte das nossas vontades, há já muito tempo. Não andámos aqui um atrás do outro.
Benjamim: Era o passo natural a seguir a lançar uma canção. Foi uma boa oportunidade para irmos para a estrada e construir alguma coisa. É um pretexto para celebrarmos o nosso trabalho e também nossa música e é uma grande oportunidade para irmos para dois teatros magníficos e podermos apresentar-nos em palco e podermos superar-nos e construir algo completamente diferente. É uma oportunidade para sairmos da nossa bolha individual de escritores de canções em que estamos presos. Porque nós não estamos numa banda, temos as nossas bandas individuais, mas estão em nosso nome e de repente estamos aqui num bate-bola entre dois escritores de canções.
Altamont: E sempre foi esse formato de concerto em que pensaram?
Samuel Úria: Sim, a ideia era mesmo ser cada vez menos segmentado em termos da presença em palco.
Altamont: Fazer um supergrupo e não o Samuel Úria + Benjamim.
Samuel Úria: Superduo.
Benjamim: O duo mais alto. Quando somados, devemos ser o duo mais alto da música portuguesa.
(Risos)
Samuel Úria: Até o Slimmy e o Fernando Ribeiro fazerem um duo, aí vão mais altos do que nós.
(Risos)
Altamont: E concertos fora de Lisboa e do Porto, estão em vista?
Samuel Úria: É sempre complicado porque isto são produções próprias. E com uma determinada envergadura, é sempre difícil arriscar fora dos grandes centros. Quer dizer, eu sou a pessoa mais desgostosa com esta centralização. Porque eu venho de uma realidade muito descentralizada e sempre me senti muito afortunado por quem se dignava, ou pelas pessoas da minha terra que se dignavam a levar lá gente. Mas percebo que é muito complicado montar esta estrutura, arriscar estas estruturas fora destes centros, não é por falta de vontade.
Benjamim: E dito isto, não estão as portas fechadas. Nós queremos, obviamente, e, portanto, acho que tanto eu como como o Samuel, à partida, estaríamos dispostos a ir a mais sítios. Portugal também é um país pequeno e existe dificuldade em fazer tours fora dos grandes centros urbanos. Tanto eu com o Samuel, ao longo da nossa carreira, fazemos um esforço para descentralizar. Espero que existam programadores que nos convidem.
Altamont: Este será um projeto para continuar? Já mostraram a vontade de mais concertos, mas mais canções, um disco?
Benjamim: Uma certeza eu tenho, nós não vamos fechar isto, não vamos fechar o último concerto, mesmo que só haja estes dois e deixar de nos falar e deixar de ter ideias. Nós fizemos o “Conta-me uma canção”, depois fizemos uma canção juntos e depois fizemos esta tour. Tenho a certeza de que há mais ideias, mais momentos. Vamos ter discos novos para o ano, em princípio, portanto, acho que também as coisas estão um bocado dependentes dos ciclos. Mas, eu quero continuar a trabalhar com ele, quero continuar a fazer coisas com ele, quero continuar a tocar “Os Raros” e pode haver canções novas. Sei lá, ainda nos entusiasmamos e vamos para o Alvito e gravamos um disco, ou fazemos uma residência artística.
Samuel Úria: Pode, não está nada programado, este tempo que estamos a passar juntos, a ensaiar estas canções de uma forma muito intensiva. Isto significa aproximação, não significa nunca o contrário.
Altamont: Por último, a pergunta que não podia faltar. Quais são as vossas expectativas para estes concertos?
Samuel Úria: A minha expectativa é baseada no que estamos a fazer, é uma coisa ainda muito centrada em nós. Estou a ter muito prazer em montar este concerto, em fazê-lo na sala de ensaios e a minha expectativa está agora em perceber como é que isto vai verter para o palco. É uma expectativa/ansiedade da boa, de querer muito que aconteça, quero que este dia chegue, ir para palco e executar.
Benjamim: A minha expectativa é tocar bem, ser digno de estar a interpretar as canções do meu colega…
Samuel Úria: (Risos) Também espero que ele seja digno…
Benjamim: Quando me pediram para escrever qualquer coisa para o press release o que eu disse foi: mesmo que a sala estivesse vazia, acho que valeria a pena fazer isto. Pela questão musical, pela questão da experiência e a minha expectativa é mesmo dar o máximo, estar muito bem preparado e tocar e cantar bem com meu amigo Samuel. Eu gosto muito das canções e acredito, tenho a certeza, se nós o fizermos o público vai sentir isso.
O concerto de Lisboa acontece já no sábado, dia 4 de Novembro, no Tivoli e no Porto, no Teatro Sá da Bandeira no dia 8 de Novembro, e ainda conseguem comprar bilhetes na Ticketline.
Fotografias: Alexandre R. Malhado