Confesso que desconhecia, até há poucos meses, as circunstâncias terríveis que fizeram com que Melody Gardot viesse a entrar no mundo da música. O acidente sofrido (brutal atropelamento por um Jeep Cherokee, aos 19 anos, enquanto passeava de bicicleta) trouxe-lhe grandes mazelas, é certo, mas como a vida é sempre imprevisível, todos os que gostam de música não podem deixar de encarar a referida ocorrência como um “acontecimento feliz”. Não apenas por não ter terminado em tragédia maior, mas sobretudo por ter permitido dar a conhecer ao mundo um nome incontornável do universo do jazz cantado por vozes femininas. Melody Gardot joga no mesmo campeonato de Diana Krall, de Madeleine Peyroux e de Stacey Kent, entre outras, mas tem a circunstância de estar mais próxima de nós, de Portugal e dos portugueses, uma vez que vai passando por cá algum tempo, sobretudo em Lisboa, onde tem casa e amigos. Talvez essa empatia connosco tenha pesado um pouco, mesmo que inconscientemente, na forma como encarei, à partida, aquele que deveria ser o concerto de apresentação do seu recentíssimo Currency Of Man, saído no início do passado mês. Mas não nos apressemos, uma vez que antes de entrar em palco, a hora foi de Pierre Aderne, músico brasileiro nascido em França (ou francês de coração brasileiro, como queiram), bem conhecido de Gardot, com quem gravou o tema “Limoeiro”, no seu último trabalho, intitulado Caboclo.
Pierre Aderne é um músico traquejado, bom compositor, embora com uma voz pequena. Sussurra mais do que canta, por vezes, mas isso acrescenta-lhe uma certa vertente cool, a que o músico não vira costas. Foi simpático, falou bastante entre canções, e brindou-nos com uma dezena de músicas. Chamou, a meio do show, João Barradas (“o menino prodígio do acordeão português) para com ele tocar “Fado dos Barcos”, “um fadinho”, como lhe chamou, uma vez que “os brasileiros não sabem fazer fado.” O concerto de Aderne teve muito bons momentos, desde logo ao tocar “Berimbau”, mítico tema dos também míticos Baden Powell e Vinícius de Moraes, talvez o mais conhecido dos afro-sambas por eles compostos. Ao piano, curiosamente, estava o filho de Baden. Cantou “Guia”, canção que fez para o amigo António Zambujo, bem como “Fado do Ladrão Enamorado” dos também amigos Carlos Tê e Rui Veloso, embora em versão samba-bossa. Muito bonito! Terminou tocando “Limoeiro”, canção que gravou em dueto com a senhora que, meia hora depois, subiria ao palco.
E assim foi. Quando chegou o momento do segundo concerto da noite, o público estava desejoso de ouvir a voz da menina americana de nome afrancesado. O que dizer da hora e meia (talvez nem tanto, talvez um pouco mais) seguinte? A atuação de Melody Gardot foi absolutamente arrasadora! Optou por “desalinhar o alinhamento”, de tão confortável que estava em Lisboa (“Oeiras, Cascais, all is Lisbon. When I fly I fly to Lisbon, so that’s what matters”) e surpreendeu-nos com um repertório a puxar para o free jazz em certos momentos, para a bossa-nova, para o blues, para o funk, desafiando as balizas desses estilos musicais, improvisando ao piano, à guitarra, e utilizando a sua voz como um instrumento de eleição. A banda que a acompanhou merece igualmente os maiores elogios e todas as vénias possíveis. Um espetáculo dentro do espetáculo! Melody Gardot é uma artista charmosa, enigmática, subtil. É em concertos como este que sinto que a música, quando feita por gente capaz, é das melhores coisas do mundo! Todo o espetáculo foi brilhante, nunca cedendo a facilitismos. Antes pelo contrário. Músicas e improvisos bem esticados no tempo foram imagens de marca da atuação da artista americana. Como esperado, lá mais para o final do show, Melody Gardot chamou Pierre Aderne ao palco, e em conversa perfeitamente espontânea entre ambos, ouviu-se Melody dizer que quando estão juntos “we always smoke a fag”, bem como “foda-se”, por duas ou três vezes. O fascínio pela asneira dita numa língua estrangeira é um clássico, como bem sabemos. Melody fala português com alguma fluência, pronunciando as palavras de uma maneira quase correta, mas muito engraçada ao mesmo tempo. “Copo de vinho”, por exemplo, consegue dizer como se de uma portuguesa de gema se tratasse, o que é bom sinal. Homenageou Lisboa, cantando a sua conhecida canção com esse título, assim como homenageou Ornette Coleman, Charles Mingus, Charlie Haden, e lá foi dizendo, em jeito de explicação simples, que jazz quer dizer “liberdade”, por isso ela fez do concerto de ontem, aquilo que muito bem entendeu. Não terá havido uma única alma presente (e os Jardins do Marquês de Pombal estavam muito bem compostos) que não se tivesse rendido ao encanto de Melody Gardot. É fácil apaixonarmo-nos por ela, garanto-vos. Sei bem o que vos estou a dizer. É que eu, felizmente, estive lá.
Fotos gentilmente cedidas por Fernando Mendes