Veio-me à cabeça, enquanto ia vendo e ouvindo o concerto, uma pequena história que se passou comigo, há muitos anos atrás. Partilhando-a, talvez percebam melhor o que fui sentindo ao longo da noite. Conta-se em poucas linhas, e diz assim: teria eu uns 14 anos, quase recém entrado no Liceu Nacional de Queluz, quando me tornei amigo de um colega de turma, cuja tia trabalhava na Rádio Comercial. Tudo isto no início dos anos 80. A fartura de discos em casa desse meu amigo era muita, todos eles trazidos pela “tia radiofónica”, e pouca ou nenhuma importância tinham na vida do meu recente companheiro de turma. Está mesmo a ver-se o que daí foi resultando. Quem ficava com a maior parte deles era eu. Lembro-me do prazer que me dava quando entrava, triunfante, em pleno Liceu com uma boa meia dúzia de novidades em formato de LP debaixo do braço. Lembro-me, em particular, de uma vez ter levado um álbum com uma capa quase toda encarnada, apenas listada com uma tira azul, na ponta, de cima a baixo. Em tímidas letras brancas estava escrito Dire Straits e Making Movies. Muita gente me perguntava que disco era aquele, e eu lá ia respondendo o que sabia. Que tinha “Tunnel of Love” e “ Romeo & Juliet”, canções que foram suficientes para meter conversa com uma das mais giras miúdas da escola. Foi assim que conheci a banda inglesa, através do seu terceiro álbum. Bons tempos, boas recordações!
Finda a minha pequena história, vamos ao que importa. O concerto que Mark Knopfler deu ontem, no Estádio Municipal de Oeiras, foi morno, confesso. O guitarrista da extinta banda que fez furor desde os finais dos anos 70, até metade da década seguinte, apresentou-nos várias canções do seu trabalho a solo, e essa terá sido a principal razão para o pouco caloroso acolhimento que foi tendo, a espaços, durante a duração do espetáculo. Quando resolveu tocar temas dos Dire Straits, o empolgamento do público era outro, e percebe-se bem a razão, que na minha opinião tem origem dupla: melhores canções, e a memória que temos dos tempos em que foram surgindo. Daí a reação de alguma relativa indiferença às canções “Broken Bones”, “Corned Beef City” ou “Laughs and Jokes and Drinks and Smokes”, todas dos seus últimos trabalhos. Com “Privateering” passou-se o mesmo, e todo o público teve de esperar quase uma hora para ouvir “Romeo & Juliet”. Foi nesse momento que me lembrei da história que abre este texto, e não pude deixar de sorrir. Não é fácil quando os tempos se cruzam num dado momento. Não será fácil para um artista, calculo eu, perceber que é o seu passado musical que o público quer ouvir no momento da atuação. Mark Knopfler não fez grandes cedências, e entendo isso perfeitamente. Um artista não pode viver apenas do seu passado, e mesmo quando a ele Knopfler regressou, fê-lo apresentando alguma desaceleração em relação ao ritmo dos temas originais. Aconteceu com “Romeo & Juliet”, com “Sultans of Swing” (muito menos swingada, de facto) e até com “So Far Away”, já no encore. Na letra deste conhecidíssimo tema reside a chave do que até agora pretendi dizer. Não são necessárias grandes metáforas sobre o tempo, ou sobre o seu efeito em nós. Basta uma letra de uma canção certeira: “You’re so far away from me / So far I just can’t see”. Os anos passaram, e os Dire Straits e o seu líder foram ficando para trás…
O tempo é uma instância tramada, e nem sempre conseguimos resolver da melhor maneira os seus ínvios enredos. Eu, na noite de ontem, não consegui encontrar, como gostaria, a união perfeita entre o passado e o presente. Apesar do bom guitarrista que continua a ser, dos excecionais músicos que trouxe consigo, a verdade é que lhe falta, a solo, o lote das orelhudas canções que teve enquanto líder da banda cujos álbuns transportei tantas vezes (“triunfante”, convém repetir) debaixo dos braços. E é bem verdade que dificilmente se triunfa mais do que uma vez, quando a memória e o tempo são nossos adversários. Eu saí derrotado. Mark Knopfler saiu-se bem melhor da contenda, embora não totalmente em ombros.
Fotos gentilmente cedidas por Fernando Mendes
Revi-me em parte da estória que contas. E não sou o sobrinho da tia :). Belo texto, amigo.