José Afonso foi um dos maiores revolucionários da canção nacional e influenciou todas as gerações que lhe seguiram. Mas a herança de Zeca vai muito além da música.
“O Fausto é um grande músico, um grande autor de canções. Eu acho que nesta geração – a dos filhotes do Zeca Afonso – ele é o melhor de nós todos”, disse José Mário Branco sobre aquele que é também um dos seus companheiros de estrada. Mas se Fausto é o melhor dos herdeiros de José Afonso – não somos ninguém para discordar do autor de “Inquietação” – a influência de José Afonso está longe de se esgotar nos cantautores que granjearam fama nas décadas de 70 e 80.
O músico de Aveiro construiu a sua discografia alicerçada em princípios de ruptura, vogando contra a moda, nunca esquecendo a tradição e procurando sempre a novidade, sem sacrificar a qualidade. O músico rompeu com os cânones do fado e da balada de Coimbra, reinventando o formato ao lado do seu companheiro Adriano Correia de Oliveira (tantas vezes injustamente esquecido), para depois reinventar a tradição oral portuguesa, inspirando-se na recolha etnomusicóloga de Michel Giacometti e nas canções heróicas de Fernando Lopes-Graça. Destacou-se entre os cantores de intervenção por nunca sacrificar a qualidade musical em troca de uma mensagem e foi pioneiro na introdução de elementos africanos na música portuguesa. Todos estes traços da música de Zeca deixaram tantos herdeiros que seria um trabalho hercúleo identificá-los a todos.
Musicalmente, Zeca criou uma escola que influenciou alguns dos mais importantes músicos portugueses dos últimos 60 anos, como José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto Bordalo Dias, Jorge Palma, Sam the Kid, B Fachada, Allen Halloween, Capicua, Cristina Branco, Mário Laginha, entre tantos outros que o ouviram, citaram e cantaram.

Alguns beberam da vontade de Zeca em mudar o status quo, na sua atitude combativa. Inúmeros músicos de hip-hop citam o cantor de Aveiro como uma influência para a sua poesia, citando-o e “samplando-o” amiúde. Keidje Lima, mais conhecido no mundo artístico por Valete, encontrou na música do autor de “Os Vampiros” inspiração para as suas letras de consciencialização.
Mas é redutor colocar Zeca como apenas um cantor de intervenção. Não só redutor, é de facto injusto, quando ele foi muito mais do que isso. Foi um criador de canções perfeitas e que se tornaram míticas – “Cantigas do Maio”, “Grândola Vila Morena”, “Índios da Meia Praia” ou “Canção de Embalar”, entre tantas outras -, que trilhou caminho para uma nova canção popular portuguesa que foi percorrida e alargada por tantos outros. É por isso importante ver como Zeca deixou de ser considerado apenas como “um cantor de esquerda”, sendo cantado e citado como uma influência por músicos que estão longe desta ideologia (pensemos em Samuel Úria, os Golpes ou Pedro Ayres Magalhães), mas que encontram na música do cantor uma inspiração.
Sam the Kid considera a música de Zeca como “intemporal” – e quem o conhece, sabe a importância dessa palavra no vocabulário de Samuel Mira. Nele e noutros cantores do seu tempo, Sam encontrou motivos para samples, tendo usado uma curta passagem de “Coro dos Tribunais (Final)” para o beat de “Negociação”, do disco Pratica(mente). Capicua é talvez, no mundo do rap, a admiradora mais vocal de Zeca Afonso. No álbum Sereia Louca cita-o de duas formas diferentes, uma delas pedindo a Gisela João que grave uma versão de “Menina dos Olhos Tristes” e a outra com uma sample de “Canção de Embalar” (“Adormecia com o pai e a mesma canção do Zeca/ dorme meu menino…”).

Outro dos nomes mais “samplados” da música portuguesa é o do filhote original: José Mário Branco. O músico, que chegou a trabalhar com o rapper Chullage, conheceu a música de Zeca Afonso quando vivia no Porto. E se as primeiras incursões de José Mário foram inspiradas na canção medieval, com o EP Seis Cantigas de Amigo, o single “Ronda do Soldadinho” é indissociável das canções de intervenção gravadas por Zeca. E em 1971, no disco de estreia, é inevitável encontrar a cada esquina a sombra de José Afonso, se bem que mesclada com a influência de Léo Ferré e também de Lopes-Graça.
O caminho dos dois divergiria a partir do segundo disco do músico do Porto, que se manteve mais chegado à tradição francesa e clássica, sem nunca abandonar totalmente as canções tradicionais. E a ramificação de José Mário Branco chega posteriormente a Samuel Úria, B Fachada, o anteriormente referido Chullage ou a toda uma nova geração de fado que não é herdeira de Zeca, mas que foi tocado pela genialidade de José Afonso.

Outra das ramificações, e talvez aquela que é mais devedora de Zeca, é a de Fausto, o homem que mais procurou mesclar as raízes tradicionais portuguesas com os ritmos africanos, sem nunca deixar para trás a estética e o apelo da canção pop.
O músico de “Foi Por Ela” foi o primeiro a convidar Zeca para gravar um tema, em 1974, no magnífico P’ró Que Der e Vier. Musicando um poema de Eugénio de Andrade, José Afonso fornece o contraponto a Fausto em “Não Canto Porque Sonho”, uma música de uma aparente simplicidade tremenda, mas com elementos harmónicos intricados que lhe atribuem uma beleza estonteante.
Fausto é, de acordo com José Mário, o melhor de todos os filhotes, apesar de ser aquele que menos influência terá tido nas gerações vindouras. No entanto, sem ele não teria havido Júlio Pereira, Gaiteiros de Lisboa ou os magníficos Diabo na Cruz, altamente interessados na tradição musical portuguesa e com vontade de a revolucionar.

Por fim, temos o terceiro filhote directo de Zeca, a terceira parte d’Os Três Cantos, Sérgio Godinho. Musicalmente, este é o herdeiro mais afastado da música de José Afonso, se bem que a sua poesia é aquela que mais se assemelha ao mestre de Aveiro. Desde as primeiras letras em português que Godinho se aproxima do surrealismo e da letra tradicional que Zeca tão bem adaptou a poema cantado.
Godinho terá sido, dos três herdeiros originais, o que granjeou mais sucesso comercial, fazendo uso da sua capacidade de conseguir sintetizar uma canção pop perfeita. E, tal como Fausto, não se fez rogado quando encontrou a canção perfeita para dividir microfone com o seu mestre: a magnífica “Quatro Quadras Soltas”, em que Zeca canta o terceiro verso, dividindo a faixa ainda com Adriano Correia de Oliveira e Fausto.
Sérgio Godinho teve uma profunda influência em projectos como os Da Weasel, Clã ou David Fonseca, um testemunho da sua estética diversa que tanto pode influenciar hip-hop, como música mais jazzística ou o mais empedernido pop-rock.

Mas por muito influente que a música de Zeca tenha sido (e continue a ser), há mais nele do que o seu trabalho. Quando recordamos José Afonso, lembramos um ideal, um homem que nunca vergou e que lutou por aquilo em que acreditou durante toda a sua vida. Falamos do homem obcecado que se esquecia de compromissos pessoais por pensar demasiado na sua música. Zeca era o homem que incomodava amigos a qualquer hora do dia para que o ajudassem a gravar uma melodia que lhe tinha aparecido na cabeça.
Quando pensamos em Zeca, é impossível não lembrar o génio musical que foi pioneiro muito antes dos restantes pioneiros. Se pensarmos mais a fundo, reconhecemos o seu talento, humor, capacidade de resistência, a solidariedade, desejo de justiça, intransigência e inquietação. Lembramos também a sua independência política – “eu sou o meu próprio comité central! – e capacidade de combater os opressores da sua visão humanista.
Para aqueles que o veneram, sabemos que estamos a atentar contra o próprio José Afonso que sempre rejeitou o vedetismo e primou pela humildade, mas não podemos deixar de o fazer. Afinal, ele é o “génio que não sabia afinar a viola”.
Musicalmente, é difícil encontrar um músico de excelência português que não tenha sido influenciado por José Afonso, ou que não tenha ligações indirectas à sua influência. Mas o Zeca é e era muito mais do que música. E é também da sua humanidade que precisamos de ser herdeiros.