Arcade Fire deram o concerto da noite lembrando que o indie rock faz falta, mas foram Dino d’Santiago, Nu Genea e Pabllo Vittar os responsáveis por pôr o parque da Bela Vista a dançar.
As plateias dançantes de Dino d’Santiago, Nu Genea e Pablo Vittar
O último dia do Meo Kalorama foi rico em muitas e variadas danças, concertos que conseguiram transformar o chão poeirento do parque da Bela Vista em pistas de dança ao ar livre. Já tínhamos começado a aquecer com Selma Uamusse, mas o concerto de Dino d’Santiago ao fim da tarde, no palco San Miguel, foi o primeiro a conseguir esse verdadeiro ambiente de festa.
O artista de Quarteira com origens cabo-verdianas tem dado que falar, sobretudo desde o lançamento dos seus discos Kriola, de 2020, e Badiu, de 2021, pela interessante fusão entre a música eletrónica e os sons tradicionais de cabo-verde, promovendo uma mensagem de diversidade e inclusão – esta nação crioula é fruto da mistura e é isso que nós somos. Prometendo “uma viagem até à ilha de Santiago”, Dino apresentou-se sozinho em palco, sempre com palavras de agradecimento para a energia que estava a receber da plateia bastante cheia, energia essa que não hesitou em dar de volta. Canções como “Nova Lisboa” e “Esquinas” deixaram o público a cantar e dançar com Dino que, mesmo não estando habituado a tocar de dia, se entregou totalmente num espetáculo com as emoções à flor da pele. “O Meo Kalorama agora é a minha pista de dança e no club vale tudo” – não foi preciso dizer duas vezes. A pista a céu aberto estava instalada e o público lisboeta não parou de acompanhar as letras e de saltar, quando Dino assim o pedia, num ambiente alegre, vibrante e seguro. “Badia” e “Roda” continuaram a festa que até teve direito a Dino a tocar ferrinho, instrumento tradicional de Cabo-Verde, o que só acrescentou textura aos beats que vinham do PA. Para cantar “Kriolu” Dino desceu ao meio da plateia, que saltava incansável e imune ao pó que levantava. “Lisboa é a cidade mais aculturada do mundo, sinto-me tão bem a tocar aqui para vocês” – disse Dino já perto do fim do seu concerto. Sem querer voltar para o palco, Dino terminou o concerto com o hit “Como Seria”, rodeado de família, amigos e de fãs (uns antigos, outros talvez adquiridos ali mesmo), na cidade que é também a sua. Foi bonita e importante a festa de Dino d’Santiago no Meo Kalorama.

Outra grande festa a que tivemos direito ontem, foi a dos Nu Genea. Confessamos que era talvez a banda por que mais ansiávamos e certamente não saímos desiludidos. O palco Samsung encheu para ver a banda de Nápoles a tocar ao vivo a sua música de dança cantada no dialeto Napolitano (não estávamos sozinhos na nossa curiosidade). Desde o primeiro momento em que os oito músicos (uma multidão) entraram em palco e nos cumprimentaram com um “Ciao Lisboa” que a dança não mais parou. A incrível voz da vocalista, que dançava em palco agitando a sua capa dourada, o saxofone delicioso ou os fantásticos sons produzidos pelo teclado Mellotron, foram alguns dos elementos que nos chamaram a atenção, mas a verdade é que o som dos Nu Genea é quase perfeito quando visto como um todo, e, para isso, nada como ouvi-los ao vivo. Vibrante, cheio e repleto de texturas, o concerto dos Nu Genea serviu sobretudo para mostrar o seu mais recente trabalho, o álbum Bar Mediterraneo, de 2022. Canções como “Marechià”, “Vesuvio” e “Tienaté”, desse disco, arrancaram reações entusiasmadas do público que, de braços no ar, cantava acompanhado as letras e os instrumentos. Sentindo a energia da audiência a banda pedia mais e o público não demorou a responder, subindo sempre a intensidade da festa. Apesar de alguns festivaleiros terem começado a abandonar o concerto perto do fim, certamente para conseguirem um bom lugar para Arcade Fire, logo a seguir, a plateia manteve-se cheia e ativa até ao fim. Uma versão estendida de “Je Vulesse”, do disco de 2018, terminou a festa com um excelente build up providenciado por um solo de guitarra. Foi com saltos, coros e mais dança que o público português se despediu dos Nu Genea e do seu concerto que certamente entra na nossa lista de favoritos do festival.

Três dias de festival são uma experiência intensa e, no fim da noite deste terceiro dia o cansaço já começava a pesar, mas não podíamos ainda ir embora, havia mais um concerto para espreitar. Pabllo Vittar, a mais famosa drag queen brasileira, foi a anfitriã da última grande festa do Kalorama. “Querem dançar?” – perguntou Pabllo à vasta plateia que ficou até ao fim para a ver (alguns fãs esperaram inclusivamente várias horas junto ao palco San Miguel para garantir um lugar na fila da frente). A resposta era óbvia, era para dançar que ali estávamos. Pabllo Vittar apresentou-se em palco acompanhada apenas pelos seus bailarinos que com ela executaram intensas e por vezes gráficas coreografias, dando assim vida ao espetáculo. Com vídeos e jogos de luzes elaborados, as canções de Pabllo Vittar iam chegando como tracks gravadas por cima das quais Pabllo cantava enquanto dançava (ótimo cardio!). Hits como “Sua Cara”, “Amor de Que” e “Parabéns” foram recebidos entusiasticamente pelo público português que sabia as letras na íntegra e não dava sinais de cansaço. Pabllo Vittar também se mostrou agradecida e contente com a forma como foi recebida – “Eu quero agradecer todo o carinho de vocês, eu tava morrendo de saudades de Lisboa”. Lisboa, claramente feliz de a ter ali, continuou a ser uma plateia dançante, num concerto quente onde certamente de queimaram muitas calorias.

O Indie Rock salva
Mas nem só de sons modernos se fez o último dia do Meo Kalorama e importa não esquecer que uma boa dose de guitarras rápidas também é boa para dançar. E se é de guitarras rápidas que precisamos, nada como um bom concerto dos Foals. A banda de Oxford já é quase veterana, trazendo já uma longa discografia recheada de hits na bagagem, hits esses que, para nosso gáudio, vieram mostrar ao Kalorama. “We’re gonna have a good time tonight” – disse-nos Yannis Philippakis, explicando que aquele era o último festival do verão para a banda e prometendo assim uma boa hora indie rock à moda antiga. “Wake Me Up”, “Mountain At My Gates” e a velhinha “Olympic Airways” abriram as hostilidades e mostraram logo que os Foals pretendiam aproveitar bem o último concerto do verão. Para “My Number” Yannis instou a que se abraçassem os amigos e se aproveitasse ao máximo aquele momento que a nós nos fez viajar atrás no tempo. Depois de “Spanish Sahara” soou “Inhaler” que levou Yannis e a sua guitarra ao fosso para perto dos fãs em êxtase. Guitarras rápidas, bateria forte, tudo certo, “Inhaler” soube a verões passados e mostrou que os Foals ainda sabem fazer bom rock. Já tínhamos saudades. “What Went Down” levou Yannis de volta às grades, continuando a troca de energia entre banda e público. O concerto terminou com a clássica “Two Steps Twice” e com uns Foals satisfeitos a agradecerem o carinho do público – “this is our last festival of the year at it’s been the one for us, thank you”. No fim saíram deixando as guitarras a fazer um ruído elétrico que continuou a ecoar-nos nos ouvidos durante alguns minutos.
Enquanto os Nu Genea punham toda a gente a dançar no palco Samsung, havia quem aguardasse junto do palco San Miguel o regresso dos míticos Hives. Depois de terem andado a tocar em festivais de queimas das fitas e outros eventos menores em Portugal nos últimos anos, os Hives voltaram, e bem, a um grande palco nacional e não desiludiram. Quem os viu na sua estreia, em 2005, no SBSR, e ontem, no Kalorama, terá sentido um misto de alegria e tristeza. Tristeza porque já se passaram quase 20 anos desde essa data. Alegria porque a banda continua igual a si própria. Como sempre vestidos a rigor, o seu alinhamento incluiu algumas faixas do novo disco e hits do passado, tendo a banda sueca mostrado ainda ter força para agarrar os públicos de grandes festivais, nunca descansando entre as músicas, puxando pelas pessoas: “ladies and gentlemen and everyone else” e continuando a exaltar a própria banda, como foi sempre o seu apanágio: ‘as outras bandas de hoje são boas, mas não tão intensas como nós’. Os suecos deram um grande concerto, um dos melhores do festival, tendo prometido regressar a Lisboa em outubro próximo. lá estaremos para os ouvir!

Dos palcos no topo do recinto lá se desceu para o palco principal pois era hora dos cabeças de cartaz. Os Arcade Fire também já estão longe de ser novatos nestas lides e já são quase habitués da cidade de Lisboa (tinham apresentado o seu novo álbum, WE, no Campo Pequeno, há menos de um ano). Para quem já os viu várias vezes, o concerto não terá tido grandes surpresas, com uma setlist preocupada em mostrar o principal do disco mais recente sem descurar os clássicos mais queridos dos fãs, mas dizemos isto apenas porque os Arcade Fire já nos habituaram a uma fasquia elevadíssima de entrega e de qualidade do seu espetáculo ao vivo. Este concerto não foi exceção.
“Rabbit Hole” e “Creature Confort”, ambas mais récentes, abriram o concerto e levaram quase imediatamente Win Buttler ao fosso para fazer crowdsurf. Com os níveis de energia em altas, os Arcade Fire não se demoraram muito em conversas, servindo as pausas entre canções apenas para os vários elementos da banda trocarem de posições, como já é, aliás, seu costume. “Neighborhood #3 (Power Out)” e “Rebellion (Lies)” continuaram a festa, relembrando Funeral, grande álbum de 2004, e levando Win mais uma vez às grades para cantar “every time you close your eyes, lies, lies” com o público. No fim da canção, as pessoas continuaram a entoar “uuuhh” com o encorajamento de um Win Butler satisfeito. “Reflektor” levou Régine Chassagne à frente do palco para dançar a agitar a sua farta cabeleira de caracóis e lembrou-nos o concerto que os Arcade Fire deram há quase 10 anos naquele mesmo local (ainda que noutro festival) e onde apresentaram o então novo álbum com o mesmo nome. Sem tempo a perder seguiram-se “Afterlife”, que teve direito um excerto de “Temptation”, dos New Order, encaixado no final por Win, e o medley épico “The Lightning I e II”, rápido e pujante, que não demorou a pôr o público a saltar.
“Desde a primeira vez que tocámos cá que dizemos a todas as bandas para virem tocar a Portugal, vocês são o melhor público, adoramos-vos!” – confessou Win Butler antes de dar a ordem para o início de “No Cars Go”. Depois de tão rasgado elogio o público não quis ficar mal visto e respondeu em força entoando a canção com Win e acompanhando Régine enquanto esta exibia o seu excelente acordeão. Mais uma vez a canção estendeu-se para do seu fim com a plateia novamente a repetir os “ooohs” do clássico de Neon Bible. “Neighborhood #1 (Tunnels)” antecedeu “The Suburbs” que Win Butler dedicou a David Bowie – “Sei que ele está a olhar cá para baixo e que está a gostar”. O público Lisboeta incansável voltou a surpreender Win Butler com a intensidade com que repetiu o refrão “sometimes I can’t believe it, I’m moving past the feeling”. “De vez em quando é importante parar para aproveitar e este momento é verdadeiramente bonito, vocês são fantásticos” – voltou a elogiar-nos Win – “Vejam lá se também sabem cantar a próxima”. “Unconditional I (Lookout Kid)” com os seus orelhudos “tututurus” voltou a exibir as habilidades vocais do público no parque da Bela Vista e, logo a seguir, “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” exibiu as de Régine, que aproveitou o destaque para também passear pelo meio da plateia.
O concerto terminou em grande com “Everything Now”, que arrancou uma reação efusiva à audiência, e com o hino épico “Wake Up”, que ficou a ecoar durante alguns minutos depois de a canção ter terminado, cantado pelos fãs que não queriam deixar aquele excelente concerto acabar. Os Arcade Fire agradeceram e saíram visivelmente satisfeitos com o público português que os recebe sempre tão bem. Que bom que foi revê-los e ver que continuam no topo da sua forma, porque é sempre bom regressar aos clássicos, não importa quantas vezes os tenhamos já visto. E porque sim, o indie rock ainda salva. Prometeram não demorar a voltar e nós acreditamos.

Música Portuguesa e Lendas do Punk
O que é nacional é bom e o Meo Kalorama parece saber disso, repetindo este ano a aposta em nomes (grandes e pequenos) da música portuguesa espalhados um pouco por todos os palcos do festival. Os portugueses Hause Plants deram um dos primeiros concertos do dia no palco Samsung. Felizes pela oportunidade de tocar no festival, mas também por poderem aproveitar como espectadores, não perderam tempo e voaram pelas canções que tinham preparado para mostrar no Kalorama. Deixando uma lista de boas práticas para os festivaleiros ali presentes – protetor solar, beber água, beber álcool e dançar (esta última recomendação seguida de imediato pelo público) – ainda tiveram tempo para um freestyle no fim do concerto que amornou o ambiente que já estava soalheiro.

A Selma Uamusse coube a tarefa de abrir o palco Meo no último dia do festival. Trazendo para o parque da Bela Vista um pouco do sol de Maputo, Selma e a sua excelente banda não demoraram a pôr toda a gente a dançar, num concerto sobre e cheio de amor. Com “No Guns” Selma falou do que se passa em Moçambique e sobre como há guerras menos visíveis do que a da Ucrânia, instando a plateia a cantar com ela “no weapons, no guns”. “Maputo”, que desde que Selma conseguiu a nacionalidade Portuguesa (passados 35 anos) mudou de nome para “Maputo/Lisboa” soou a seguir e continuou a festa e em “Song For Africa” Selma desceu à plateia para distribuir abraços e procurar o amor do público um pouco mais de perto. “Agora vou ensinar-vos algo que nem os Foals nem a Siouxsie vos vão ensinar hoje que é dançar uma marrabenta” – disse-nos Selma já perto do fim do seu concerto. Uma mão na cabeça e uma na cintura, uns passos para a direita e outros para a esquerda, Selma faz tudo parecer fácil e natural enquanto se passeia pelo palco e dança com todos os colegas da banda. Cá em baixo o público não lhe ficou atrás e deixou-se levar também pelos ritmos africanos, dançando a marrabenta, ou algo parecido, sob o sol lisboeta. O concerto terminou com uma versão da excelente “Funkier Than a Mosquito’s Tweeter” de Nina Simone – esta podem dançar como quiserem – e com Selma a impressionar mais uma vez com a sua fantástica voz e presença em palco. Foi um belo aquecimento para as danças que o dia ainda nos traria, mas já lá vamos.

O concerto seguinte naquele palco era da verdadeira realeza do punk. Siouxsie Sioux já tem 66 anos, mas isso pareceu não importar a quem ali se reuniu para ver o seu concerto, muitos envergando até t-shirts de Siouxsie. A banda entrou em palco ao som da suite “Carnaval dos Animais” de Camille Saint-Saëns, primeiro os quatro músicos vestidos de preto e depois Siouxsie, com pinta de bruxa gótica e com uma postura irreverente que manteve durante todo o concerto. Infelizmente a qualidade do som deixou muito a desejar, o que estragou um pouco a experiência de um dos concertos mais aguardados do Kalorama. Mesmo após Siouxsie ter perguntado ao público se estava tudo bem com o som, o baixo mal regulado continuou a incomodar até ao fim do set. Isto não impediu, ainda assim, Siouxsie de dar um bom espetáculo, com um alinhamento composto sobretudo por canções de Siouxsie and The Banshees. “Nightshift” ou a cover de “Dear Prudence” dos Beatles deliciaram os fãs e permitiram perceber que Siouxsie está ainda em grande forma, dançando e mandando beijos para as primeiras filas da plateia. Atrás da banda iam passando uns vídeos de gosto duvidoso que nada acrescentavam à performance – estamos a ver uma lenda viva, não precisamos de mais artifícios. Entre canções Siouxsie ia reclamando com as barreiras que dividiam a plateia em dois – it’s a space with nothing, what’s it for” – e quase que instava o público a entrar na onda hard-rock/punk e derrubá-las. “Spellbound” e “City of Dust” quase no fim foram os pontos altos do concerto que passou demasiado depressa, segundo a própria (e nós não discordamos). No fim Siouxsie ainda se divertiu a atirar o microfone ao ar e a deixá-lo cair ao chão, num mic drop punk que só a ela permitimos.

E assim terminou a segunda edição do Meo Kalorama, uma edição recheada de grandes concertos que vamos certamente lembrar durante bastante tempo. Uma edição que teve também os seus problemas, nomeadamente o pó do chão que se tornou particularmente incomodativo neste último dia em que se levantou algum vento, e o posicionamento dos palcos, que por vezes resultou em má visibilidade e má qualidade de som para os festivaleiros. Mas tudo isto é expectável num festival que ainda se está a ajustar ao seu recinto, ao seu público e à sua cidade. Os ingredientes estão todos presentes para tornar o Meo Kalorama num dos grandes festivais do país e da Europa, mas importa aprender com a experiência passada para proporcionar aos fãs de música o melhor fim de verão possível. Ficamos curiosos para saber quais serão os grandes nomes que a produtora espanhola Last Tour trará na próxima edição, mas confiamos que nos farão estar de volta daqui a um ano.
Fotografias cedidas pela organização.