O segundo dia do Meo Kalorama foi feito de contrastes entre a delícia do indie nostálgico dos Belle and Sebastian ou do art pop de Florence + The Machine e a dança da electrónica ambiente de FKJ ou da parede de ruído de Aphex Twin.
Indie Nostálgico de Fim de Tarde
O primeiro concerto do segundo dia do Meo Kalorama começou bem cedo (em dias de muitos concertos há que começar cedo), ainda o sol ia alto. Os Capitão Fausto mostraram-se bem-dispostos e em modo compacto, com um alinhamento dominado por canções dos dois últimos álbuns. Os já clássicos “Amanhã Tou Melhor” e “Boa Memória” arrancaram as reações mais entusiasmadas do público que se juntou ao gingar de anca de Tomás, Domingos e companhia, mas foi “Santa Ana” que, para nós, fez o concerto. Sempre um gosto ver estes jovens a tocar na sua cidade.

Ethel Cain era o concerto a seguir, por isso era hora de subir para o lado oposto do parque. Uma espécie de Alanis Morissett cristã, Ethel Cain trouxe a Lisboa o seu mais recente disco, Preacher’s Daughter, e o seu indie folk etéreo. No centro do palco e sem nenhum instrumento, salvo a ocasional harmónica, Ethel Cain mostrou a sua invejável habilidade vocal, enquanto se deixava acarinhar pelo público nas primeiras filas que claramente tinha vindo cedo para a ver. A surpresa foi a entrada de Florence Welsh (que mais tarde tocaria com os seus The Machine) para cantar com Ethel a canção “Thoroughfare”. Foi bonito ver aquelas duas mulheres imersas no talento uma da outra, claramente cúmplices e sem nenhuma sombra de competição por partilharem talvez o mesmo público.

Um dos momentos mais aguardados do dia era o regresso da banda de Stuart Murdoch, os Belle and Sebastian, a terras lusas. Mesmo nunca fugindo muito do mesmo registo (também já não têm idade para isso), o indie nostálgico da banda escocesa é doce e reconfortante e sabe sempre bem, qualquer que seja a hora ou a circunstância em que os vemos. O concerto no Kalorama comprovou, mais uma vez, a regra. Talvez devido ao ligeiro atraso de 10 minutos (estranho num festival que tem conseguido ser sempre pontual), os Belle and Sebastian decidiram que não havia tempo a perder e entraram logo com os hits. “The State I Am In” e “I’m a Cuckoo” soaram bem apesar dos problemas de som sentidos em palco, em particular com o baixo. Os contratempos não desanimaram a banda que foi crescendo em energia à medida que o concerto avançava. “We’re very old and you’re very young” – exclamou Stuart Murdoch entre canções – “This next song is older than you, it’s from my first record Tigermilk” – explicou para apresentar “She’s Losing It”. Pedindo desculpa por não saber mais português, Stuart continuou conversador durante o resto do concerto. Seguiram-se “Another Sunny Day” – uma canção sobre estar apaixonado pela primeira vez – primeiro é feliz e depois fica um bocadinho triste, mas é sobretudo feliz – garantiu Stuart (um pouco como a música dos Belle and Sebastian). “Unecessary Drama”, do disco de 2022 A Bit Of The Previous, teve direito a uma ótima harmónica tocada por Stevie Jackson, mas foi “Piazza, New York Catcher”, mais calma, tocada a seguir, que acabou por ser um dos momentos altos do concerto. Contando-nos que escreveu aquela canção com 20 e poucos anos sobre como conheceu a mulher, Stuart decidiu ir conhecer o público mais de perto e cantou a maior parte no meio da plateia, tendo mesmo regressado ao palco numa caminhada, talvez arriscada, pela grade. O público não ficou indiferente à atenção e retribuiu o carinho acompanhando com palmas até ao fim da canção.
Sem perder o balanço, os Belle and Sebastian lançaram-se de seguida no ótimo medley disco “Your Cover’s Blown”. Rápida e enérgica como se quer, deixou Stuart Murdoch a saltar pelo palco (nem parece que já tem uma certa idade) e o público em baixo a dançar com vontade. Continuando a tentar não se deixar afetar pelos problemas de som que pareciam não dar descanso e começavam a incomodar os artistas em palco, “Get Me Away From Here, I’m Dying” substituiu “The Boy With The Arab Strap” enquanto se trocava um teclado que não funcionava. Lá se resolveu o problema e a clássica canção do álbum homónimo pôde ser tocada, com os já tradicionais elementos do público convidados para subir ao palco e dançar. Foi neste ponto que o concerto ficou um pouco caótico, com fãs a tentarem tirar selfies e falar com Stuart, enquanto este tentava terminar o espetáculo. Ainda assim ficou clara a simpatia e a boa vontade de todos os elementos dos Belle and Sebastian, que acederam com um sorriso a todos os pedidos e até tocaram um bocadinho da “(I Can’t Get No) Satisfaction” dos Rolling Stones em resposta a uma fã claramente emocionada que repetiu várias vezes as palavras “I can’t get”. “Ok we’re satisfied” – disse por fim Stuart repondo a ordem. Havia que terminar o concerto e essa tarefa foi deixada a cargo de “Too Much Love”, canção que, segundo Stuart, nem faz sentido porque nunca podemos ter demasiado amor.
Foi uma delícia rever os Belle and Sebastian, que prometeram voltar a Portugal no futuro próximo. Mesmo com todos os contratempos sentidos, Stuart Murdoch, que é um estupendo frontman, e companhia nunca deixaram de estar bem-dispostos e felizes de estar ali a tocar para o público lisboeta. Que voltem depressa!

A eletrónica de FKJ e Aphex Twin e a Missa de Florence
O segundo dia de Meo Kalorama teve grandes contrastes nas bandas que trouxe e, para o concerto seguinte, foi necessário mudar ligeiramente o chip. Tinha acabado o indie nostálgico e era hora da música eletrónica ambiente de FKJ. Apresentando-se sozinho em palco, rodeado apenas por vários teclados, sintetizadores, guitarras e um saxofone, o francês Vincent Fenton, que adotou o nome artístico French Kiwi Juice, agradeceu à audiência bastante composta por estar ali com ele. Apesar de pouco interativo (o género de música não se presta a isso), FKJ causou boa impressão junto do público português que mergulhou rapidamente no house com toques acústicos que Vincent ia construindo ao vivo. Num ambiente de festa sunset, FKJ tocou “alguns clássicos e alguns remixes” entrecortados com um delicioso saxofone ou mesmo com a sua voz aqui e ali.

Quem se deixou ficar até ao fim da festa de FKJ terá com certeza tido dificuldade em arranjar um bom lugar junto do palco Meo para o concerto seguinte já que Florence + The Machine eram claramente o nome que mais gente levou ao parque da Bela Vista esta sexta-feira. Só o palco já anunciava a teatralidade do concerto a que íamos assistir: uma plataforma ao centro, uma espécie de construção a fazer lembrar um bolo de noiva derretido atrás, e os instrumentos (entre eles uma harpa) em segundo plano. Florence à frente e a máquina atrás. O público estava expectante, importa dizer, com uma energia cada vez menos contida e quase tão palpável como o pó que continuou a não dar descanso neste segundo dia de Kalorama. A entrada em palco da banda seguida de Florence Welsh provocou a libertação dessa energia. Palmas, gritos, berros, e telemóveis, muitos telemóveis, receberam os Florence + The Machine no Meo Kalorama.
“Heaven is Here”, “King” e “Ship to Wreck” foram as canções escolhidas para começar a festa e rapidamente provocaram os primeiros saltos na enorme plateia do palco Meo (mas não seriam os últimos). Florence Welsh apresenta-se sempre com uma postura de ícone prestes a ser canonizado, de vestido comprido e descalça, e muito agradecida pelo carinho que recebe, o que só lhe fica bem dado que já leva mais de uma década nestas lides. É claramente uma grande performer, ainda que o concerto pareça por vezes ensaiado de mais, com cada gesto de Florence perfeitamente planeado para surtir o efeito exato do público (e gerar o melhor conteúdo para as redes sociais). As canções mais recentes, embora não tão bem conseguidas como os hits do passado, são recebidas com a mesma emoção pelo jovem público que responde e repete cada gesto que Florence executa em palco. “Free” e “Hunger” levaram Florence para junto do público devoto junto às grades. Este quer tocar-lhe, numa experiência quasi-religiosa que nos fez lembrar o concerto que Nick Cave deu há um ano no mesmo lugar, mas para as gerações mais novas. “Obrigada, é tão bom estar de volta, senti-me segura e acompanhada no meio de vós” – disse Florence na primeira pausa do espetáculo. Agradecendo a energia e o entusiasmo do público e recomendado que bebêssemos água porque havia muito pó no ar (nós sabemos Florence, obrigada), apresentou a sua amiga Ethel Cain, que subiu ao palco para cantarem juntas “Morning With Elvis”. Numa repetição do momento a que assistimos ao início da tarde, foi mais uma vez bonito ouvir as belas harmonias que as duas amigas conseguem produzir. “You Got The Love” e “Choreomania” antecederam a excelente (ainda que talvez problemática) “Kiss With a Fist” – não vieram ao festival para ficar parados, pois não? Toca a dançar!

Para a clássica “Dog Days Are Over”, recentemente (re)descoberta por uma nova geração de fãs através do TikTok, Florence pediu que se guardassem os telemóveis e se vivesse um momento de comunhão – porque é para isso que aqui estamos todos, não é? Para estamos conectados. Fazendo uma pausa na canção e depois de um momento “paz de Cristo” onde nos pediu que cumprimentássemos as pessoas ao nosso lado (se é para ser missa é para ser a sério), Florence instou toda a gente a saltar no refrão seguinte e soltar as más energias. O público, sedento de agradar à mágica mestre de cerimónias, fez o favor e o resultado foi impressionante, com o parque da Bela Vista em peso a cantar “the dog days are over, the dog days are done”. A nuvem de pó que se levantou quase imediatamente e deixou toda a gente a tossir, inclusive a própria Florence, comprovou-o.
Sempre com uma instrução pronta, Florence pediu que se erguessem lanternas para “Cosmic Love” (agora já podemos usar telemóveis?) e continuou a rodopiar e a pedir ao público que saltasse para “My Love” e “Restraint”, tendo toda a banda saído abruptamente do palco no fim desta última. O público não se deixou enganar com o encore mal disfarçado e rapidamente estávamos de volta. “Vou cantar uma canção que já não canto há muito tempo, escrevi-a aos 20 anos quando não sabia o que era estar triste” – contou-nos Florence para introduzir a bela “Never Let Me Go” enquanto agradecia mais uma vez todo o apoio do público que parece transmitir-lhe força anímica. “Shake It Out” e “Rabbit Heart (Raise It Up)” terminaram o concerto missa encenada dos Florence + The Machine. Sem nunca apresentar a banda, que era excelente, Florence despediu-se com um simples “we love you, take care of each other, goodnight” e saiu deslizante da mesma forma que entrou. Foi sem dúvida um grande concerto, mas não podemos deixar de pensar na prestação de Karen O e dos Yeah Yeah Yeahs no primeiro dia que, sem grandes artifícios, sem grandes instruções para o público e sem grande aparato cénico, conseguiu criar uma festa igualmente intensa e, na nossa opinião, mais genuína. Mas são gostos e provavelmente públicos diferentes e o que importa é que se aproveite a experiência, com ou sem histórias no Instagram.

Enquanto uma quantidade significativa de festivaleiros se encaminhava para a saída, já satisfeitos com o dia, começavam nos palcos no topo do recinto as apresentações de Baxter Dury e de Arca. Como sempre, escolhas tiveram de ser feitas e de Arca vimos apenas o início do seu DJ set glitchy e muito pouco harmónico que, não sendo a nossa praia, parecia estar a deixar quem estava junto ao palco San Miguel bastante satisfeito. O inglês Baxter Dury apresentou-se acompanhado por uma bateria e por sintetizadores que ajudavam a construir a sua sonoridade escura e suja, perfeitamente de acordo com a hora tardia e com as nossas roupas cheias de pó. Sempre com uma pose de quem não quer muito saber e com o som bem alto, Baxter Dury mostrou as suas canções no Kalorama cuspindo versos zangados com um carregado sotaque britânico-operário.

A última atuação da noite foi a de Aphex Twin, um dos mais relevantes produtores de música eletrónica da atualidade e outro dos grandes nomes no cartaz do Kalorama. Apesar de ter começado atrasado devido a problemas num dos vários ecrãs em palco, os festivaleiros que aguentaram até ao fim não pareceram muito incomodados e responderam com entusiamo ao início do set electrónico de Richard David James. Com um grande aparato de luzes e de material em vídeo, talvez para compensar a falta de ação em palco, a apresentação de Aphex Twin levou ao Kalorama uma parede de ruído que não agradou, certamente a todos os gostos. Porém, aqueles que apreciam este género de música não saíram desiludidos da grande discoteca a céu aberto em que se transformou o parque da Bela Vista. De notar o momento em que nos ecrãs começámos a ver imagens de figuras queridas dos portugueses como Cristiano Ronaldo, Marcelo Rebelo de Sousa ou Fernando Mendes, com a cara de Richard colada digitalmente por cima. Supomos que seja a sua maneira de dizer obrigada Portugal, já que interação com o público houve pouca.
E assim acabou o segundo dia de Meo Kalorama, com menos calor e mais nublado, mas com ainda mais pó. Já só falta um dia de festa antes de voltarmos todos à realidade e o menu é apetitoso. Hoje esperam-nos Siouxsie, Foals, Arcade Fire e The Hives, portanto é aproveitar!
Fotografias cedidas pela organização.