Voltou a “Rainha dos raios”, voltou a Voz, mas também “a sereia que dança, a destemida Iara”, voltou a Lisboa a enorme Maria Bethânia!
Maria Bethânia regressou aos palcos portugueses, e logo ao melhor e mais emblemático de todos, o Coliseu dos Recreios de Lisboa, espaço onde durante largas décadas foi tantas vezes feliz, e onde nós fomos com ela partilhando a imensa alegria de a ouvir. Mas este não foi um regresso qualquer (como nunca poderia ser, tratando-se da figura que é), uma vez que depois de cinquenta e dois anos de carreira, a “abelha rainha” resolveu festejar connosco esse seu imenso percurso numa espécie de concerto best of, onde em cerca de hora e meia foi desfiando os seus melhores e mais conhecidos temas, intercalando-os com alguns bastante recentes e (ainda) com menor estatuto quando comparados a pérolas como “Samba da Benção”, “Olhos nos Olhos”, “O Que É, O Que É?” ou “Reconvexo”.
Maria Bethânia continua a ser uma voz que não muda, uma presença que não se altera, uma artista que se mantém a mesma desde que veio do Recôncavo da Bahia, de Santo Amaro da Purificação para o mundo. Se em certas personalidades isso pode ser um problema, com Bethânia é uma imensa virtude. E vê-la assim, como a vimos ontem, é quase um milagre. Os anos não passam, passando. Ou melhor: parece apenas que passam para nós. Acompanhada por Jorge Helder (contrabaixo), Túlio Mourão (piano), Paulo Dafilim (violas e violão), Pedro Franco (violão, bandolim e guitarra), Marcio Mallard (cello), Carlos César (bateria) e Marcelo Costa (percussão), Maria Bethânia soube entusiasmar um público sedento da sua voz e do seu jeito (tarefa pouco complicada, portanto), mas soube também tocar íntima e profundamente muitos dos corações que palpitaram por ela a noite inteira, e isso já não é para todos, convenhamos.
Até que o minuto tão ansiado chegou! Com Bethânia, toda vestida de prata e brilhando como estrela que verdadeiramente é, chegou também Caetano, uma vez que as duas primeiras canções do espetáculo são de sua autoria: “Gema” e “Podres Poderes”. Depois houve samba, houve bossa, houve vida, memórias desfilando “em rajadas de vento” de Iansã, poesia, poetas de além mar e deste nosso canto, tudo no canto de uma das deusas maiores do universo da melhor música popular do mundo. Tudo “gostoso demais” e “nos braços da paz”. Tudo absurdamente bonito e encantador, não há quem o “Negue”, não há quem possa afirmar o contrário. Bebemos, todos juntos, o “Cálice” de outros tempos e recordámos momentos das nossas vidas, evocando passados longínquos, “que é uma maneira de ser escutado” tudo aquilo que, ficando para trás, soube bem trazer até ao presente. Recordou-se Amália Rodrigues, Naná Vasconcelos, Vinícius de Moraes (“o branco mais preto do Brasil”), Tom Jobim, o seu e o nosso “mano Caetano”, Chico Buarque, Piaf, saudou-se Lisboa, Portugal, Pessoa, todos os que estiveram presentes na noite mágica do Coliseu, porque ela, Maria Bethânia, está “sempre começando” o “infinito, enquanto dure”. E não adianta acabar quando é hora de acabar, “não adianta nem me abandonar”, sobretudo porque “mistério sempre há de pintar por aí”.
Como se percebe, a noite foi tocante e de comunhão. Risos, vozes cantando em coro, choros (a própria Bethânia não aguentou tanta emoção), uma imensa catarse unindo pessoas e países. Brasil e Portugal dispensaram durante hora e meia o Atlântico que os separa e banharam-se no prazer da língua que os congrega. A música e a voz dourada que vinha do palco fizeram o que tinham de fazer: uma enorme e genuína festa!
Bethânia, “do jeito que você me olha, vai dar namoro”. E deu. Até hoje e até sempre!