Percebe-se bem porque é que os The National se sentem tão confortáveis a tocar em Portugal. O que vimos ontem no Coliseu foi um momento de comunhão entre banda e público, de entrega à música e de carinho – muito, tanto que podemos dizer que foi como se os norte-americanos tivessem voltado a casa.
A banda tem vindo praticamente todos os anos a Portugal desde a estreia em Paredes de Coura, em 2005 (esta repórter falhou esse mas viu praticamente todos os outros) mas só tocaram meia dúzia de vezes em nome próprio e esta foi apenas a segunda vez que o fizeram numa sala que se compatibiliza com o tom íntimo e melancólico da banda. Depois da experiência transcendente da Aula Magna, em 2008, a envolvência do Coliseu, a maturidade da banda e a entrega do público tornaram o espectáculo de ontem inesquecível.
Na hora de abertura de portas a fila já tinha centenas de pessoas e assim continuou até quase ao arranque do concerto, o que deixava já antecipar que a noite seria especial. A banda toca em todas as idades, desde adolescentes a famílias (vimos crianças pequenas nos camarotes) e, para quem lá foi, um concerto dos The National é uma experiência quase de culto.
No concerto do ano passado, na impessoalidade da Altice Arena e em ambiente de festival, temíamos que os The National não voltassem a conseguir dar um espectáculo épico. Matt Berninger estava desgastado, com alguns quilos a mais, cansado e com a voz profunda a fugir-lhe e a falhar os gritos com que de vez em quanto salpica algumas músicas. Desta vez, contudo, foi como voltar atrás quase dez anos mas ter mais uma mão-cheia de excelentes canções na bagagem – e uma maior maturidade em palco (ainda que tenhamos sentido falta dos rasgos de loucura, das subidas para cima do piano ou do PA e de o ver deitado no palco).
A música inicial mostrou logo ao que vinham os The National – “Karen”, de Alligator (2005), soou como um desafio e uma promessa. Sim, o concerto faz parte da digressão para Sleep Well Beast, o sétimo disco da banda, mas o grupo não ia deixar de fora os temas que já são quase hinos. A reacção do público foi a esperada: o coro mais ou menos afinado a repetir palavra por palavra a letra de uma canção com mais de dez anos (e anterior a Boxer, álbum que os catapultou para a fama) prometia a Berninger e companhia que iam ser acompanhados passo a passo.
À segunda música, “The System Only Dreams in Total Darkness”, do novo álbum, já Berninger andava no fosso junto dos fotógrafos, a receber banhos de público enquanto ia rodopiando em si mesmo naquela forma já tão conhecida de estar em palco, uma espécie de Ian Curtis desajeitado e ensaiando alguns passos de tímidos de dança. Convidada para o palco estava Arone Dyer, vocalista dos Buke & Gase, banda que fez a primeira parte do concerto e é a voz que se ouve no início desta música. No concerto, passou despercebida das vezes que se juntou à banda – o coro de vozes do público era demasiado alto.
Passando em revista temas do disco novo mas também de High Violet e até de Trouble Will Find Me o envolvimento com o público foi aumentando a cada canção, mesmo que só a meio o vocalista se tenha dirigido ao público, elogiando a sala e dizendo que o camarote presidencial poderia ter sido mandado fazer por Donald Trump.
Foram ao baú buscar “Guest Room” (tocada pela primeira vez desde 2014) ou “Santa “Clara”, e em “Afraid of Everyone”, “Apartment Story”, “Secret Meeting” e “Terrible Love” criaram um gigante coro de vozes e palmas. Temas mais calmos como “I Need My Girl”, “Green Gloves” e “Karen at The Liquor Store” foram ouvidos em silêncio respeitoso e cantando baixinho a acompanhar enquanto se iam balançando no ar alguns isqueiros, à antiga. Em “Turtleneck” tentou dançar, cantou para um telemóvel que depois atirou e desta vez escolheu dois momentos para se passear pelo meio do público, como já tradicionalmente faz: em “Day I Die” escolheu o lado esquerdo do palco e sentou-se num dos camarotes que lhe estavam a despertar curiosidade desde o início (acredito que no próximo concerto vai conseguir chegar ao presidencial, se os quilómetros de fio de microfone que são desenrolados freneticamente enquanto o público o agarra e puxa chegarem) e em “Mr. November” foi engolido pela multidão na bancada do outro lado.
A sequência antes do encore de “Fake Empire” e “About Today” confirmou que há canções que tocadas ao vivo se tornam quase transcendentes, com Bryce Dessner a elevar bem alto a guitarra enquanto dedilhava distorção – o instrumental de “About Today” (a canção tem apenas 87 palavras) é sempre o momento de consagração do guitarrista, de tal forma que Berninger costuma sair de palco para regressar no encore e há quem não se aperceba que ele desapareceu.
A ligação entre público e artistas foi de simbiose. Desde o momento em que os vimos sair do camarim, em vídeo, até ao adeus final, o público gritou, cantou, bateu palmas, emocionou-se e despediu-se a querer mais. Faltaram, claro, alguns temas chave – sentimos falta de “Slow Show”, “Abel”, “This is The Last Time”, “Pink Rabbits” ou “Squalor Victoria”, que ao vivo em vez de cantada é gritada e fica tão melhor. Mas não fez mal. Da nostalgia dos temas mais antigos à receptividade para com as novas canções, todos cantavam as letras do início ao fim e nos temas mais calmos o silêncio da plateia era de profundo respeito – até alguns shhhh se ouviram e não foi apenas quando a já habitual música de fim de festa – “Vanderlyle CryBaby Geeks”, a cappela – se fez anunciar com Dessner a tomar o centro do palco com uma guitarra acústica enquanto Berninger filmava com o telemóvel.
No final, ninguém queria arredar pé e não tivessem as luzes acendido quase logo após a saída da banda creio que ainda por lá continuávamos, a entoar “I’ll explain everything to the geeks”, à espera de podermos voltar a abraçar a banda com o nosso coro desafinado.
Fotografia: Mafalda Piteira de Barros