Recordar João Gilberto, o disco de 1973, é simultaneamente uma obrigação e um prazer. Retirá-lo do esquecimento, se assim se pode dizer, é a nossa boa ação de hoje, o nosso momento de serviço público. Aproveite-o.
É inútil negar. Quando se pensa em João Gilberto, os discos que mais aplausos merecem são os seus primeiros três álbuns, adicionando-se, e bem, o que regista o histórico encontro com Stan Getz, em 1964. No entanto, poucos são os que tiram da memória o disco homónimo de 73, uma obra absolutamente digna de constar no topo dos melhores da sua carreira. É esse que hoje vos trazemos, o disco da capa branca, como também é conhecido.
Não que queiramos retirar o devido valor aos históricos Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) ou João Gilberto (1961), o que, para mais, de tão caricato, seria um total absurdo. São álbuns seminais, como os ouvidos do mundo há muito bem sabem e conhecem, mas a obra de João Gilberto, o Mito, como também é conhecido, vai muito para além de “Chega de Saudade”, “Desafinado”, “A Felicidade”, “Doralice”, “O Pato”, “A Insensatez” ou “O Samba da Minha Terra”, entre muitas outras clássicas composições. Ela estendeu-se por outras artérias sonoras, indo refugiar-se em abrigos baianos, que como ele, também baiano, despontaram um pouco mais tarde para a música popular brasileira, revolucionando-a por completo. Em João Gilberto, um tema de Caetano Veloso e um outro de Gilberto Gil ombreiam com composições de António Carlos Jobim, Ary Barroso, Haroldo Barbosa e Herivelto Martins num disco de verdadeira exceção.
O prazer começa a desenrolar-se assim que a agulha poisa nas clássicas “Águas de Março”, um dos temas mais icónicos da música popular brasileira de todos os tempos. Ouvir “é pau, é pedra, é o fim do caminho” na voz de João Gilberto é o fim da picada, mas em bom. O maravilhamento mantém-se com “Undiú”, composição do próprio João Gilberto, criado em parceria com Jorge Amado, mas que aqui aparece sem a letra original. É um mantra absoluto e que só um génio poderia fazê-lo e interpretá-lo como aqui se faz. “Na Baixa do Sapateiro”, outro tema vindo do Olimpo da MPB, ganha neste álbum a versão instrumental definitiva. No entanto, a surpresa maior do Lado A do álbum chega-nos com “Avarandado”, o tema de abertura do disco Domingo, que lançou para o mundo a dupla Caetano Veloso e Gal Costa. Na voz do mestre João, “Avarandado” deixa a soturnidade melancólica que originalmente tem na voz do mano Caetano, passando para um outro plano, onde o sussurro cantado nos leva ao delírio adocicado através das pequenas nuances tímbricas que só João Gilberto sabe produzir. E como em festa de baianos cabe sempre mais um, pulemos para “Eu Vim da Bahia”, feita por “aquele preto que você gosta” (lembrando o que dizia Dona Canô para o seu filho quando Gilberto Gil passava na televisão), já no Lado B do disco, deixando para trás (imerecidamente, diga-se) as ótimas “Falsa Baiana” e “Eu Quero Um Samba”. Na faixa de Gil, João Gilberto arrasa, uma vez mais, brindando-nos com a perfeição dentro da perfeição. Se o samba de Gilbeto Gil já é o que há muito se sabe, o que o baiano de Juazeiro fez com ele é digno dos maiores elogios. São quase seis minutos de paraíso harmónico e vocal. Convém lembrar que João Gilberto conta apenas com a voz e o violão do artista, com a bateria de Sonny Carr e com a voz de Miúcha em “Izaura”, a faixa que encerra este tesouro sonoro. As belas “Valsa (Como São Lindos os Youguis) (Bebel)” e “É Preciso Perdoar” aproximam-nos do fim do álbum, sempre com a mestria das faixas anteriores, hipnóticas e magnéticas.
João Gilberto foi sempre preferindo uma aproximação cada vez mais minimalista no que toca à execução da sua arte: a de fazer diamantes sonoros. E sendo isso indesmentível, talvez seja neste disco que tal coisa se revela da forma mais aprimorada. Tudo aqui é perfeito, desde a escolha do repertório, até ao produto final. É também neste álbum que João Gilberto reforça a sua tendência de cantar em looping os vários temas presentes, sendo que em alguns dos casos (em “Avarandado”, por exemplo) são três as vezes que canta o bonito poema de Caetano Veloso. Tudo para o nosso eterno contentamento!