É um dos mitos mais famosos do mundo da música do século XX, só que é absolutamente verdadeiro. A amizade, admiração mútua e colaboração entre dois dos mais respeitados músicos de sempre, Miles Davis e Jimi Hendrix, numa história que mete também ao barulho Paul McCartney, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Um disco que juntaria os dois colossos Davis e Hendrix. O que seria se?…
Vamos por partes.
No final dos anos 60, Miles Davis estava numa encruzilhada. Já bem dentro dos seus 40 anos, assistia à decadência do jazz enquanto grande formato de entretenimento popular, esmagado pelos hippies e pelo som do rock n’ roll que marcaria a década. No jazz, Charlie Parker havia partido antes, Coltrane em 1967. Dos grandes, sobravam Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Charles Mingus e o próprio Miles. Mas se Dizzy – um grande inovador nos anos 40 e o primeiro grande ídolo de Miles – tentava manter viva a chama do jazz dessas décadas, Davis andava inquieto. Ganhava muito dinheiro, mas os seus discos não vendiam como antes e começou a ver algo impensável: alguns lugares vagos nos auditórios onde tocava. Depois de ter sido rei do bebop e de ter criado o cooljazz na sua versão mais negra e autêntica, Davis já não estava a ditar o rumo do género. Esse, nessa altura, estava nas mãos de músicos como Ornette Coleman, que destruíam a estrutura e esticavam os limites da música e da paciência de muitos ouvintes, lá bem nos limites do louco free-jazz. Esta tendência durou vários anos mas, na opinião de Miles, acabou por destruir o jazz enquanto formato popular. Em 1964, lembra Davis na sua autobiografia, “muita gente começou a dizer que o jazz estava morto, e a culpar os excessos do free-jazz que gente como Archie Shepp, Albert Ayler e Cecil Taylor estavam a fazer, e o facto de não ter uma linha melódica, não ser lírico e não se poder cantarolar. O jazz começou a perder a sua atracção ampla por volta desta altura”. Os clubes começaram a fechar.

O cenário não se alterou nos anos seguintes. “Os críticos brancos que haviam suportado o free-jazz, de repente, começaram a atacá-lo: demasiadas notas, demasiado show-off técnico, e pouca composição e melodia. De repente, o jazz tornou-se passé, uma coisa morta que se mete debaixo de um vidro no museu para ser estudado”, recorda Miles. E o rock “de súbito estava em todo o lado. rock n’ roll branco roubado do negro rythm and blues e a pessoas como o Little Richard e o Chuck Berry e a malta da Motown”.
Miles sempre foi um pensador, um marcador de tendências, um músico magnífico e insatisfeito, e um homem de negócios. Percebeu que a demografia funcionava contra si e contra o jazz, que as novas gerações já não ouviam com o mesmo entusiasmo que vingava antes. Vem daí a sua aproximação à electricidade, aos ritmos da música africana, ao funk e até ao rock n’ roll.
A transformação do seu som foi concretizada através dos músicos de que se rodeou no percurso: Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams foram os mais constantes nessa altura, e foi com eles que o som de Miles foi mudando. Depois a revolução chegou com Keith Jarret, Jack de Johnette ou Chick Corea. Uns anos mais tarde, Miles deixaria por completo de recrutar para a sua banda músicos de jazz, preferindo ir buscá-los jovens às bandas de funk e de rock.

A título pessoal, a segunda metade da década de 60 levou Miles numa direcção diferente. Em 1968 casou-se com Betty Mabry, desde então Betty Davis, uma lindíssima cantora e compositora. Foi ela a impulsionadora da mudança, numa altura em que o músico já estava enfeitiçado pelo funk de James Brown e de outros. “Betty foi uma grande influência na minha vida pessoal e também na minha música. Apresentou-me a música de Jimi Hendrix e ao próprio Hendrix e a outros músicos negros de rock. Conhecia o Sly Stone e essa malta. Ela estava à frente do seu tempo. Também me ajudou a mudar a minha forma de vestir. O casamento só durou um ano, mas esse foi um ano cheio de coisas novas e de surpresas que estavam a apontar-me o novo rumo, na minha música mas também no meu estilo de vida”, recordou Davis. Os fatos impecáveis estavam fora, estava a começar a fase do Miles roqueiro, de camisas coloridas e lenços extravagantes. Com uma mulher nova, a cabeça cheia de música excitante e uma década fresquinha a caminho, Miles estava pronto para nova mudança.

É dessa altura a amizade com Hendrix. Segundo Davis, foi o agente do guitarrista quem fez a ponte: Jimi era um fã e queria trocar ideias sobre o trabalho de composição de Davis e sobre a sua execução. “Jimi gostava de algumas coisas que eu tinha feito em Kind of Blue e noutras coisas e queria adicionar mais elementos de jazz ao que ele andava a fazer. Gostava da forma como o Coltrane tocava com aquelas várias camadas de som e ele tocava guitarra um pouco da mesma forma. A Betty gostava bastante da música dele – e vim a saber mais tarde, gostava fisicamente dele – e ele então começou a aparecer lá por casa”, refere Miles. Muitos anos mais tarde, diga-se, Betty Davis negou que alguma vez se tivesse envolvido com Hendrix, durante o casamento com Miles ou fora dele.
Nos poucos anos seguintes, Hendrix passou a ser companhia habitual na casa de Miles, em Nova Iorque, onde ambos tinham o seu principal pouso fixo. Inicialmente, a conversa era sobre o que Miles fazia, com este a tocar discos seus e de Coltrane e a explicar ao guitarrista como o tinham feito, qual era a intenção, etc. Depois, a relação evoluiu para algumas jams, só a dois, que nunca foram gravadas.
Em 1969, surgiu a hipótese de gravar um disco juntos. “Chegámos próximo disso com o produtor Alan Douglas, mas o dinheiro não batia certo ou estávamos demasiado ocupados para nos juntarmos”, é tudo o que Miles diz dessa primeira tentativa. Recentemente, surgiu informação fresquinha que é, no mínimo, surpreendente. Em Outubro de 1969, os escritórios da Apple receberam um curioso telegrama de Nova Iorque, assinado por Hendrix, Davis e pelo baterista Tony Williams e endereçado a Paul McCartney: “Vamos gravar um LP neste fim de semana em Nova Iorque. Que tal passares cá para tocar o teu baixo? Contactar Alan Douglas 212-5812212. Paz Jimi Hendrix Miles Davis Tony Williams”. O célebre telegrama foi vendido em leilão em 1995 e está disposto na parede do Hard Rock Café, em Praga.
McCartney estava de férias e só soube do convite mais tarde, mas a verdade é que a sessão de gravação não aconteceu. Alguns biógrafos de Hendrix culpam Miles ou o baterista Williams, já que um dos dois havia pedido 50 mil dólares adiantados só para participar na sessão, e o ambiente estragou-se. Sobre isso, Miles nunca disse uma palavra.

O capítulo seguinte da saga é em 1970, pouco antes da morte de Hendrix. Tanto este como Miles Davis estavam no cartaz do grande festival da Ilha de Wight. Miles havia editado meses antes o seminal Bitches Brew, mostrando ao mundo a sua veia de fusão jazz-rock em todo o seu esplendor, e cimentava a sua posição enquanto músico ao vivo, mesmo em ambientes rock. Esse disco, aliás, venderia mais de meio milhão de cópias nos anos seguintes, tornando-se à data o disco de jazz mais vendido de sempre.
Essa actuação na Ilha de Wight é curiosa também por outro motivo. Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam na assistência, e tocariam num dos dias do festival. De repente, o sistema de som pede, em inglês, que os compositores brasileiros Gil e Veloso se apresentem no backstage a convite de Miles Davis. Gil contou a história mais tarde, e explicou que a sua música chegou a Miles através do brasileiro Airto Moreira, percussionista da banda de Davis que estava também presente. Lá chegados, Moreira apresentou-lhes Miles Davis que, após uma curta conversa, agarrou em Gil e o levou para “conhecer um amigo”. Esse amigo era Jimi Hendrix, que se preparava para brilhar em palco. Para Miles, sempre atento à questão da raça na música, todos eles tinham algo em comum, o lado negro da música, o ritmo, os blues.

Quanto ao trabalho preparatório para o disco, Hendrix e Davis tinham combinado encontrar-se em Londres a seguir ao festival. No entanto, o trânsito estava tão caótico que não se conseguiram encontrar à hora marcada. No dia seguinte, Davis seguia para França onde ia dar uns concertos. O encontro acabou por ficar marcado para mais tarde, em Nova Iorque, com o arranjador Gil Evans. Há também a informação que Hendrix e Davis tinham combinado um ensaio no final de Setembro, em Carnegie Hall, para ver se conseguiam dar aí um espectáculo posterior que poderia resultar num disco ao vivo.

Já em Nova Iorque, a pouco tempo da data marcada para o encontro a três, Evans e Davis receberam a informação que matou Hendrix, o seu futuro e aquele que poderia ser um disco marcante na História da música. A 18 de Setembro, Hendrix morria em Londres, asfixiado no seu próprio vómito e cheio com uma mistura de vinho tinto e comprimidos para dormir.
Miles, que fugia de funerais – faltou inclusivamente ao da sua mãe – foi ao enterro de Hendrix, que odiou, pela falta de respeito que o “padre branco” demonstrou pelo seu amigo. Há relatos de que Davis foi mesmo impedido de tocar o seu trompete no funeral, o que quereria fazer como homenagem. “Foi tão mau que jurei que nunca mais iria a nenhum funeral, e nunca voltei a ir”, explica o trompetista. Foi uma despedida triste e amarga.
Não ficou música em conjunto, mas temos as palavras de Miles acerca do seu amigo.
“A sua morte afectou-me muito porque ele era muito jovem e tinha tanto caminho para fazer. O Jimi não sabia ler música. Então eu tocava uma coisa no piano ou no trompete e ele apanhava mais rápido que um cabrão. Tinha um dom natural para ouvir e entender música. Foi incorporando coisas minhas nos seus discos. Ele influenciou-me e eu influenciei-o, e é assim que a grande música é sempre feita. Toda a gente a mostrar a toda a gente alguma coisa e depois partirem daí. O Jimi Hendrix veio do blues, como eu. Entendemos-nos um ao outro imediatamente por causa disso”, contou na sua autobiografia.

Depois desse evento, Davis começou a afastar-se um pouco do rock e a entrar ainda mais no funk. Como explicou, “depois da sua morte, e independentemente do enorme músico que ele era e de quanto eu pessoalmente amava a sua música, muito poucos jovens negros tinham ouvido falar dele, porque para eles ele estava demasiado dentro do movimento branco do rock”. “Os miúdos negros estavam a ouvir Sly Stone, James Brown, Aretha Franklin e os grupos da Motown. Depois de eu tocar em tantos destes grandes eventos de rock branco, dei comigo a pensar em como fazer os jovens negros ouvirem a minha música como os miúdos brancos já estavam a fazer. Os negros estavam a consumir o funk, música que os fizesse dançar. Levou-me algum tempo a definir totalmente o conceito, mas já tinha uma nova banda que me levaria lá”.
Miles, no final de 1970, saído do maior sucesso comercial da sua carreira, estava mentalmente já a caminho da sua próxima aventura musical. E ela seria eléctrica mas também africana, cheia de ritmo e soul.