Talvez seja mais ou menos assim: ou se gosta ou se odeia. Numa visão menos maniqueísta, pode ser que aos poucos toda a gente chegue lá, ao feeling musical de Bingo Fury. Mas duvidamos bastante, é um facto.
O seu verdadeiro nome é Jack Ogborne, mas artisticamente atende por Bingo Fury. É inglês, nascido em Bristol, a cidade aos pés do rio Avon, a sudoeste de Inglaterra. Ainda não terá um quarto de século de existência, mas vem mostrando uma maturidade musical que não se coaduna com a que tem registada nos seus documentos oficiais. Entre algumas particularidades curiosas, uma tem que talvez não abone muito a seu favor, do ponto de vista intelectual, digamos assim: diz que leu apenas três livros em toda a sua vida, sendo que um deles é um volume de poemas de David Berman. Isso talvez já diga algo de importante sobre Bingo Fury. Isso e o facto de adorar Neil Young e John Cage. Se quisermos resumir o que dele conhecemos, diríamos ser um contador de histórias. Um contador de histórias de voz grave, acompanhado por uma certa atonalidade musical. Estes são alguns dos ingredientes de uma receita muito recente chamada Bats Feet For a Widow.
Bingo Fury não se apresenta só. Vem acompanhado de quatro amigos, a saber: Meg Jenkins (baixo), Henry Terrett (bateria), Harry Furniss (corneta) e Rafi Cohen (guitarra, piano e glockenspiel). Todos juntos, gravaram Bats Feet For a Widow numa pequena igreja da cidade de Bristol. O resultado é simultaneamente estranho e cativante. Bastante, até. Sobretudo se tivermos em conta que as canções de Bingo Fury não foram feitas para o grande público. Não passarão na rádio, seguramente, nem veremos sequer alguém a cantarolar na rua qualquer uma das nove canções do álbum. Bats Feet For a Widow é para ser ouvido ao fim da tarde ou pela noite dentro, quase até ao raiar do dia. De whisky na mão, de preferência.
O primeiro tema do disco tem uma particularidade muito própria. Deverão ser idênticos os tempos repartidos entre piano, corneta, escovas de bateria e puro silêncio. Vão-se intercalando, criando um estranho ambiente. “Carolina’s Theme” é enigmático e dá o tom certo para os vinte e oito minutos seguintes, aos quais teremos inevitavelmente de adicionar a voz grave e límpida de Bingo Fury. É ela que triunfa em “Unlistening”, cujo final lembra os experimentalismos de John Cage. O tema deambula por palavras que evocam religião e dúvidas, angústias próprias da existência humana. E se é verdade que alguns toques de jazz começam a surgir de todos os lados, ele torna-se free, sobretudo nos momentos finais de “Power Drill”. O canto quase falado (“I’ve got to be clean / I’ve got to be clean”) de Bingo Fury são já clara imagem de marca, ao terceiro tema de Bat Feet For a Widow. Segue-se “Mr. Stark”, tema-homenagem à personagem da Marvel, que Robert Downey Jr. levou ao grande ecrã. Bem a meio do álbum, a serena “Centrefold” (a localização no disco, pelo título que tem, terá sido propositada?) é um momento de pausa nos experimentalismos anteriores, e prepara-nos para a reta final. “Never Gonna Be a Dead Man” mantém alguma da serenidade da faixa anterior, parecendo ser retirada de um filme francês dos anos cinquenta. Louis Malle e o seu Ascenseur Pour L’échafaud vem-nos à memória, incluindo certas passagens da mítica banda sonora de Miles Davis, até que “I’ll Be Mountains” introduz de novo algum do free jazz maravilhosamente mal comportado que vai pontuando todo o álbum de Bingo Fury. “My Cup Overflows” tem versos enigmáticos e toda a sua atmosfera é densa, com um lado teatral muito próprio. O canto parece representação e a musicalidade anda à volta do free (uma vez mais), mas também do no wave. É fácil imaginar Lou Reed, mas também Julian Cope, a cantarem / falar em neste tema, bem como em alguns outros, aliás. “Leather Sky” termina Bats Feet For a Widow da melhor maneira. Bonito poema (em que teremos de destacar, sem termos de avançar com qualquer explicação, os versos “In the full contact smokers lounge / Whistling in Portuguese”), bonita e esparsa melodia, tudo perfeito, em toda a sua plena estranheza.
Bats Feet For a Widow é o primeiro álbum do ano que nos arrebata pela sua inconvencionalidade. Bingo Fury fez um disco que nos desperta para outros sentidos, que nos obriga a ouvi-lo com a máxima atenção. Só depois de várias audições, quando a compreensão é outra e o à-vontade perante o que ouvimos se torna mais óbvio, talvez só aí entendamos o monstro que temos pela frente. Mesmo sendo fevereiro, não me admiraria muito que este viesse a ser um dos discos de 2024.