Bonita a história do nascimento, morte e ressurreição do género musical mais odiado de sempre. Nós gostamos de disco e explicamos porquê.
O disco sound pode ter má fama, mas nunca se ralou muito: tem ao menos o proveito. O disco pode ser kitsch mas a sua combinação certeira de exagero e artifício é uma fonte de prazer estético, semelhante à que encontramos, por exemplo, nos filmes do Almodóvar. O disco pode ser escapista mas só há fuga quando existe muita dor a montante. Na sua essência, o disco é sexo como salvação. Com um importante bónus histórico: sexo numa idade da inocência em que não havia ainda o fantasma da sida a assombrar o desejo. No seu groove, na sua leveza, no seu glamour, o disco é a festa desmedida da última noite do mundo.
Dizem que o disco é filho de pai incógnito mas é mentira: a mãe é a Motown e o pai o James Brown (o bandalho é que nunca assumiu a criança). No final dos anos 60, Brown inventa a febre rítmica do funk. A partir daí, a soul não mais seria igual, incorporando a complexidade rítmica do funk. O soul da Philadelphia não foi excepção, funkizando o seu groove. Evoluiu depois em direcções inesperadas, com os seus arranjos orquestrais sedutores à Barry White e a sua batida “quatro no chão” (o pedal do bombo a marcar os quatro tempos do compasso). O produto final já não é soul, já não é funk. Chamaram-lhe disco sound.

Ora se o público branco não estava ainda preparado para a negritude radical do funk e da soul mais crua, ficou maravilhado com esta versão mais diluída: negra no coração mas branca nas suas exuberantes orquestrações; complexa no groove do baixo e da guitarra mas radicalmente simples na batida do bombo. Com o seu totalitário tum-tum-tum-tum, até os branquelas pés-de-chumbo não têm outro remédio senão seguir o compasso.
A centralidade da sua batida torna a dança irresistível. Os primeiros a perceberem esta estreita relação entre o disco e a dança foram as comunidades negras, latinas e gays da baixa nova-iorquina. Não terá sido certamente por acaso. Minorias com vidas tramadas precisam de válvulas de escape. Após uma semana dura de trabalho, a serem tratados como lixo, nada é mais libertador do que o palco hedonista de uma discoteca, uma experiência quase tribal onde os egos se dissolvem na comunhão colectiva dos corpos dançantes. No caso dos gays, estes santuários são ainda mais sagrados, dos raros espaços públicos onde podem expressar abertamente quem são.
No seu culto desbragado da festa e do prazer, o disco parece apolítico. Mas as aparências enganam. Quando minorias silenciadas ousam reclamar para si o direito a se exprimirem como entenderem, com quem entenderem, o disco transforma-se num gesto profundamente político, quase revolucionário.
Se nos primeiros anos da década de 70, o disco estava ainda confinado ao underground, começou a subir à superfície em 1975, muito por responsabilidade da dramática reinvenção dos Bee Gees a partir de “Jive Talking”. Em 1976, a diva do disco Donna Summer entra a pés juntos com o lascivo “Love to Love You Baby”, um hino ao prazer feminino sem tabus.

A explosão no mainstream acontece em 1977, com o sucesso estrondoso do filme “Febre de Sábado à Noite” e o seu desfilar de grandes clássicos dos Bee Gees (“Staying Alive”, “You Should Be Dancing”, “Night Fever”). Donna Summer continua a surpreender, desta feita com a visionária “I Feel Love”, totalmente gravada com sons sintetizados. O ano seguinte é o clímax criativo do disco: “Freak Out” dos Chic, “I Will Survive” da Gloria Gaynor e “Heart of Glass” dos Blondie são algumas das suas imortais bandeiras. Até os Stones se rendem ao disco com a maravilhosa “I Miss You”. Quando a banda mais rock’n’roll do planeta não tem qualquer pudor em abraçar o disco, percebemos o quão mesquinhos podem ser os maniqueísmos do costume.
Mas o sucesso do disco foi a sua maldição de Midas. Uma oferta excessiva satura o mercado com música de baixa qualidade. E a crise económica que acabou de aterrar exige, como sempre, os seus bodes expiatórios. Radialistas de rock sem escrúpulos exploram em seu favor o ressentimento da América conservadora contra “o deboche e libertinagem do disco“. Num maldoso trocadilho homofóbico, chamam ao movimento “disco sucks”. O subtexto é desprezível, opondo a virtude do rock (porque branco e heterossexual) ao pecado do disco (porque negro e homossexual). No dia 12 de Julho de 1979, num estádio de basebol em Chicago, milhares de trogloditas comparecem à chamada de um DJ rancoroso, destruindo milhares de álbuns de disco na praça pública. A alma penada de Goebbels sorri. A esquerda é cúmplice pelo seu pesado silêncio. Atacado por todas as frentes, o disco é abatido sem piedade. Paz à sua alma.

E, no entanto, nunca chegou a morrer. Michael Jackson fugiu ao rótulo mas a sua “Billie Jean” mais não é do que a mais bela canção disco alguma vez escrita. Jamiroquai é disco de dieta: o groove está lá todo mas com zero calorias kitsch para quem quiser manter a linha. O melhor disco da Madonna, Confessions on a Dance Floor, transplanta os Abba para as discotecas do século XXI. Franz Ferdinand é disco enxertado com rock gingão. Cansei de Ser Sexy é disco gourmet para hipsters sofisticados. “Get Lucky” dos Daft Punk é a terna e tardia homenagem ao disco, a música de dança electrónica finalmente a reconhecer o imenso legado dos pais fundadores. O disco continua ubíquo como deus, pecador como o diabo.
E vamos lá falar verdade. Mesmo os estetas mais moralistas já amaram secretamente as Sister Sledge. A vida é demasiado curta para nos darmos ao luxo de termos guilty pleasures. Culpa só se for pelos prazeres renunciados em vão. Como o disco que não dançámos porque não parecia bem.
Enquanto houver dor no mundo, precisaremos sempre de ilusões, de bolas de espelho. Dançamos a noite toda para não quebrarmos.