A música como escapismo nunca me disse nada. Enganar os tolos com pão e circo é um costume tão antigo como degradante. Se não for para mergulhar de cabeça na tragédia humana, então não vale a pena. Talvez por isso goste tanto deste terceiro disco dos Fausto: frontal e verdadeiro como poucos. Tudo nele é uma reflexão agridoce sobre a passagem inexorável do tempo e o que vai ficando pelo caminho. Em cada compasso seu espreita a aguda consciência de que os pós-adolescentes que fizeram Gazela há cinco anos já não existem (paz à sua alma). No seu lugar, homens feitos confrontam-se com a dureza do mundo, da violência das escolhas à percepção cada vez mais palpável da mortalidade. Este disco faz o luto por essa juventude perdida que não mais voltará. O sombrio refrão que encerra este álbum diz tudo: “nunca esquecer que para nós a mocidade nunca mais nos vai servir”.
Ora, para escrever este requiem, os Fausto tiveram que fazer um corte abrupto com a sua obra anterior. O rock gingão de Gazela, Franz Ferdinand com ovo a cavalo, era perfeito para rebentar pistas de dança, mas impróprio para cantar agora a perda da inocência. O psicadelismo de Pesar o Sol, Tame Impala com pastéis de bacalhau, padece de maleita semelhante: imbatível no que toca a distorcer estados de consciência, contraproducente para o banho de realidade que agora reclamam. Para a cerimónia fúnebre dos verdes anos era imperativo enterrar de vez as guitarras estridentes do passado e, ó blasfémia!, sepultar o próprio rock. Daí que, pela primeira vez na história dos Fausto, as teclas de Francisco Ferreira prevaleçam sobre as guitarras de Palha e Wallenstein, num langor dream pop (a recordar Beach House) que nos entorpece como uma fuga de gás. As próprias guitarras são agora tocadas de uma forma radicalmente diferente, com o reverb ácido e os riffs explosivos do passado a darem lugar a arpejos suaves à Byrds e a leves pinceladas soul.
É num jogo permanente de claros e escuros que se desenha esta obra-prima. Veja-se o caso dos omnipresentes coros doo-wop: se as harmonias de voz à Beach Boys nos remetem de imediato para um éden veraneante com sol de cartolina, todo o disco acontece bem a leste do paraíso. Da mesma maneira, melodias sombrias são sempre iluminadas por um quarteto de sopros quase tropical, um pouco à imagem e semelhança dos Love de Arthur Lee (e o seu pop de câmara doce e atormentado ao mesmo tempo).
E tudo isto é atingido com uma economia e espírito de síntese invejáveis. Oito temas e trinta e dois minutos bastam para os Fausto nos oferecerem o seu melhor álbum. O clímax da contenção expressiva é atingido em “Semana em Semana”. A dinâmica deste tema é muito interessante: três partes que vão evoluindo através da subtracção de instrumentos, o caminho para a solidão. No final, o trompete nocturno está completamente sozinho, chorando uma tristeza infinita com apenas algumas notas. Talvez nunca se tenha dito tanto com tão pouco na música pop em português.
A ruptura dos Fausto com a sua estética anterior não se esgota nos seus aspectos musicais; expressa-se com igual vigor na escolha das palavras. Onde antes as letras eram enigmáticas, quase abstractas, agora são violentamente confessionais, desabafos disparados à queima-roupa, o mais íntimo e intransmissível de súbito tocando o universal. Wallenstein deu um salto quântico no drible das palavras: ganhou uma desenvoltura à B Fachada e cada vez mais trata a língua portuguesa por tu. Frases-bomba como a “se eu tenho o fisco à porta devo ser ladrão” sucedem-se em catadupa, ecoando na nossa cabeça durante dias.
Como raio os Fausto cresceram tanto em tão pouco tempo? Não sei responder. A incursão por vários projectos paralelos teve certamente o seu papel, retirando-lhes a pressão de serem Capitão Fausto, carta-branca para a livre exploração das mais exóticas sonoridades. Talvez tenha sido esse o alçapão de acesso a velhos vinis que pressentimos correrem subterrâneos: Nancy Sinatra, Palma, Godinho e Zé Mário dos anos setenta, Dennis Wilson e até Miles Davis. O desenrolar natural da vida, com os seus inevitáveis embates e percalços, fez provavelmente o resto.
Agora, cresceram tanto que o nosso pequeno país não lhes cabe. Vivessem eles em Inglaterra, ou mesmo no Portugal dos noventa, encheriam certamente estádios. Nascidos no sítio errado e na época errada, os Fausto são apenas a melhor banda portuguesa desde os Ornatos Violeta.
E que gigante apenas, minha gente.