Não Lembra ao Diabo era um dos lançamentos mais aguardados do ano e, não surpreendendo ninguém na sua qualidade, foi um belíssimo regresso que dificilmente parará de ecoar pelos espaços e pelos tempos.
Em 2019, o mundo ficava a conhecer os Zarco, com o lançamento do seu primeiro álbum Spazutempo, a que ninguém podia ficar indiferente, de tão surpreendente e novo que soava. O grupo, composto por João Sala, Fernão Biu, João Nunes, Pedro Santos e Gastão Reis, afirmava-se como uma das mais ricas bandas emergentes, com o seu rock progressivo português, herdeiro de nomes como Fausto Bordalo Dias, e prometia um futuro musical brilhante. Porque a vida é injusta, Gastão deixou-nos no final de 2020 e, o que o mundo perdeu, perderam os Zarco infinitas vezes.
Pegar na dor insuportável que não nos abandona e com ela fazer arte, criar coisas belas que inspirem quem nos rodeia, não só é tarefa hercúlea, como é algo de que nem toda a gente é capaz. É precisa uma união muito forte e uma grande vontade de honrar a amizade, esse sentimento tão humano e, simultaneamente, tão transcendental, para encontrar força para voltar. Os Zarco fizeram-no e, a 16 de junho deste ano, lançaram o álbum Não Lembra ao Diabo, totalmente acústico e com uma estética ligeiramente diferente dos trabalhos anteriores, de seis temas.
O início do álbum é marcado pelos primeiros acordes de “Escuta, Meu Menino”, tímidos, que entram cuidadosos pela sala e que crescem já acompanhados da voz, que canta sobre ser-se bom, viver verdadeiramente e aproveitar bem todo o tempo que temos. Ainda que composta com poucos elementos, a música de simples não tem nada; é densa e pesada e transparece a falta que sentem os Zarco. Seguindo a mesma mensagem de uma vida livre, boa e generosa, a letra esperançosa de “Morrer de Pé” surge mais animada e dá ares da música de intervenção de José Mário Branco. As cordas, os sopros e a percussão juntam-se a coros bonitos num convívio harmonioso, contrastante com o tom reivindicativo da voz, que urge pelo optimismo e pelas boas ações, repetindo “Enquanto gente livre, temos mais é que sonhar”.
A flauta de “Devagar, de Mansinho”, o single de apresentação dado a conhecer ainda em maio, acompanha o refrão otimista que preza a festa que se pode fazer todos os dias sobre quem mal quer e mal faz. Já “Sr.Doutor” regressa às origens e conta a história de “alguém que corrompe nos lugares de poder, quase à vista de todos e por vezes até ao abrigo da lei”, segundo a própria banda.
“Atira e Vira ao Mar” marca o início da conclusão do disco, que percorre uma linha narrativa coesa e que termina com um final feliz. Ao longo das seis faixas, ouvimos instrumentos acústicos de toda a espécie – guitarra, clarinete, flauta, bombo, adufe – e tudo mais que parecesse bem – como o pau-de-chuva que soa no início desta música. Este fim é banda sonora daquela que parece ser a grande aventura a que a banda nos deixa aceder, com o seu tom de jornada longe de estar completa. Quando se canta “Entre nós não falta ninguém”, sabe-se que há todo um caminho por percorrer, por respeito a tudo o que já se fez até aqui. Os quase sete minutos de “Ama Onde a Estrada Começa”, título adaptado de uma frase de Cesariny, fazem uma compilação instrumental de despedida, de até à próxima, e convidam os ouvintes a juntarem-se aos músicos onde quer que os dias os levem, sem medo do advento, e sim a seu lado. O final mais feliz faz-se, então, com um ré tocado por Gastão, porque a caminhada não custa tanto se a fizermos todos juntos. É o único acorde de baixo no disco inteiro.
Não Lembra ao Diabo soa diferente porque a banda está diferente, mas mantém o espírito agregador e o amor de sempre nas composições originais e magistralmente tocadas. Os Zarco perderam um amigo e, por isso, perderam uma parte de si. Mas ganharam coragem para voltar, em bom, como seria a única forma certa de o fazer, fazendo jus ao seu legado. Não terá sido fácil recomeçar, ou fazer mais, mas, porque compreendem que a vida é curta e pode ser tão bonita, ir tão além do mar, continuaram em frente, cantando novos sentidos e novas formas. Este era um dos lançamentos mais aguardados do ano e, não surpreendendo ninguém na sua qualidade, foi um belíssimo regresso que dificilmente parará de ecoar pelo espaço e pelo tempo.