Rubber Soul não é apenas um bom disco. Nem é apenas um excelente disco; é um disco essencial. Não é um disco que se recomende; é um disco obrigatório.
Dezembro de 1965. Fechava-se o ano no qual a era do flower power estava prestes a rebentar, enquanto as tropas americanas pisavam solo vietnamita pela primeira vez; no qual uma Inglaterra abatida recuperava da morte de um de uma das suas figuras políticas mais estimadas e virtuosas; no qual um Dylan de caracóis fartos revolucionava para sempre a história do folk americano e da música popular no geral – empunhando pela primeira vez em palco, no festival Newport, uma guitarra elétrica. Do outro lado do oceano, os Beatles preparavam-se para a sua própria revolução.
A banda que dispensa introduções chegara a um beco sem saída. Os concertos tornavam-se penosos, as tournés exaustivas; as hormonas transformadas em explosões gritantes da audiência adolescente tornavam os espetáculos ensurdecedores e formavam muros entre os músicos e a possibilidade de oferecer ao público a sua obra. A urgência de mudança nunca antes se revelara tão evidente.
Até ao fecho da primeira metade da década de sessenta, os Beatles confinavam-se a uma redoma simpática e confortável: os miúdos adoravam-nos, copiando furiosamente os penteados e as roupas e engolindo os álbuns e singles orelhudos que tombavam nas prateleiras das lojas de discos a uma velocidade galopante – e os pais não se importavam, talvez até emprestassem as orelhas ao rock meiguinho das guitarras de Lennon e Harrison, completo com as letras de amor inocente e juvenil do ié-ié. Enfim, não era perfeito, não era necessariamente música erudita, as melodias eram simples e descomplicadas e as letras expelidas para o ar sem grande arrojo, os quatro rapazes tinham ares agradáveis e certamente fariam maridos respeitáveis para as suas filhas. E de certeza que suspiravam de alívio ao ouvir, por entre as paredes da casa, os seus pequenos a deliciarem-se com discos dos Beatles e não dos Stones – indubitavelmente o pesadelo de qualquer pai, com a sua música sugestiva, os seus ares de irrequieto, os lábios inchados do vocalista a pingar promiscuidade venenosa.
Mas os Beatles estavam fartos de ser os meninos simpáticos e saber que a sua maior vitória era contar com o patrocínio de progenitores de classe média sorridentes; não queriam ser quatro fantoches de palco, desculpa para camisolas e canecas e revistas cor-de-rosa, que faziam música de plástico para ser ouvida e imediatamente descartada assim que chegasse a próxima. Queriam, pela primeira vez, fazer música no sentido estrito da palavra: fazer música, e só fazer música.
Ingrediente crucial nesta mudança de ares foi a mítica noite de 28 de Agosto de 1964, no qual os quatro Beatles travaram conhecimento com quem seria uma das suas maiores influências nos próximos tempos – Bob Dylan. O cantautor americano apresentava-se, à altura, como um contraste violento aos quatro rapazes bem comportados e sorridentes. Desgrenhado, cobrindo quase sempre os olhos acinzentados com uma barreira de óculos escuros, revelara-se ao longo dos últimos anos um novo messias para a juventude americana, e criara um culto furioso que o aclamava com um cristo redentor da nova vaga do folk. Dylan era frio, seco, tinha o hábito de massacrar jornalistas com respostas amargas e sarcásticas. Até então, o máximo que os Beatles conseguiam era mandar uma ou outra anedota inofensiva, eram traquinas como crianças que comem o último chocolate, mas só os adultos mais severos e conservadores lhes reservariam um franzir de sobrolho. Dylan era sofisticado, cool, algures entre o poeta e o músico: com a tenra idade de 23 anos, já escrevia verdadeiros hinos para uma juventude em revolta e canções de uma magnitude que só se multiplicaria com o passar dos anos. Harrison, o mais novo dos Beatles, era apenas dois anos mais novo.
Essa noite de verão revelou-se um abrir de olhos para os quatro de Liverpool que mudaria não só as suas vidas mas a face da história da música popular para sempre. Depois de umas casuais trocas de elogios à distância, o jornalista e amigo comum Al Aronowitz reuniu as cinco personagens no mesmo quarto de hotel em Nova Iorque – de um lado, os aprendizes Beatles, do outro, o sábio Dylan. Seria o sonho de qualquer melómano conhecer ao detalhe a conversa que se desenrolou, algo que apenas podemos adivinhar: no entanto, sabe-se que foi Dylan que deu a experimentar aos quatro um charro pela primeira vez – um cálice que tomou um papel de relevo no próximo capítulo da banda mais famosa do planeta.
Primeiro, o fechar das portas. Confinados às quatro paredes do estúdio, os Beatles encararam pela primeira vez o espaço mais como um habitat natural do que uma paragem obrigatória entre concertos: seria em 1966 que meteriam os pés numa tournée comercial pela última vez. De seguida, viraram-se do avesso de forma a descobrir um oceano de agonia, confusão e sentimentos interiores inexplorados no seu pop de pastilha elástica. Em Dezembro de 1964, com o disco Beatles for Sale, já davam os primeiros passos em direção à mudança drástica na sua lírica e temática: temas como “I’m a Loser”, de Lennon, e “I’ll Follow The Sun”, de Mccartney, que, à primeira vista, pareciam apenas mais umas canções descomplicadas para serem entoada por gargantas adolescentes aos olhos aprovadores dos adultos, já tomavam contornos de uma reflexão mais profunda e pessoal sobre o futuro, o amor e conflitos internos. No entanto, ainda faltava um bocadinho de nada para conseguirem desembrulhar o invólucro e apanharem o ouvinte casual desprevenido com uns Beatles completamente renascidos.
Dezembro de 1965. O dia chegara. Rubber Soul surge na discografia dos Beatles como uma explosão. Até então quatro rapazes risonhos e produto de fábrica para agradar a meninas e meninos, transformavam agora a sua imagem em algo completamente novo: na capa, exibem cabelos mais fartos que nunca e expressões distantes e altivas; o título flutua acima das suas cabeças diagonais num sonho psicadélico que os pais dos seus fãs não conseguiriam ignorar. Era Dylan, era a erva que entrara nas suas vidas e lhes moldara a forma de fazer música para sempre, era um cansaço geral com a vida e um encolher de ombros ao olhar para tudo o que tinham feito até agora: aqueles já não somos nós, já nem os reconhecemos. Foi um renascer gritante, um grito de independência, uma metamorfose que nem Kafka podia ter escrito. Uma revolução.
Rubber Soul marcaria um novo começo para os quatro de Liverpool. Ao longo de catorze faixas originais (apenas a segunda vez na carreira da banda, que se habituara a incluir uma ou outra versão nos seus LPs), os Beatles atingem um nível de sofisticação, capacidade refletiva e cool sem esforço na sua lírica a lembrar um Dylan, a capacidade para tecer melodias arrojadas e ricas que aprenderam com uns Byrds, e harmonias vocais mais refinadas que puxam à memória uns Beach Boys (à altura, prestes a lançar Pet Sounds e a tornar-se os adversários principais da banda inglesa). Em muito ajudou também o druida George Martin, o recentemente falecido “quinto-Beatle”, que acompanhara os quatro de Liverpool desde o início enquanto produtor e fiel braço-direito: em grande parte, foi o seu génio que permitiu que Rubber Soul não fosse só mais um disco.
O disco abre com a soalheira “Drive My Car”, derradeiramente McCartney; a guitarra, o balanço, a letra gozona – “beep beep, beep beep, yeah” – que, por baixo da sua aparente inocência, desvenda eufemismos e piscares de olho que marcariam, daqui em diante, o sentido de humor mordaz, britânico e por vezes confuso com o qual a banda acompanharia as melodias. À primeira escuta, parece mais uma música de rebuçado para chupar despreocupadamente, como eram composições de outrora da banda: é engraçada, mas pouco mais que isso. No entanto, engana: para além da sua aparente simplicidade, esconde-se um faro apurado para a melodia e para o pop sim, maioritariamente inofensivo e que nunca vai deixar queixos no chão, mas de um brilho de génio – faro esse que McCartney escondia nos bolsos desde que pegara numa guitarra pela primeira vez, e que ostentaria com orgulho a partir de Rubber Soul em todos os trabalhos vindouros. É verdade que McCartney nunca conseguirá calçar os sapatos de Lennon, nunca conseguirá espelhar a sua alma torturada, distorcida, profundamente confusa e perturbada que despeja nas suas composições: mas que sabe escrever uma boa, até excelente, música pop, sem a necessidade de recorrer a grandes complicações – isso sabe. E em Rubber Soul joga com todas as cartas: é a doce e afrancesada “Michelle”, no qual um McCartney com voz de suspiro e estrangeirismos certamente derreteu corações de todas as mulheres que o escutaram, é a orelhudíssima “I’m Looking Through You” – possivelmente, a melhor música pop escrita pela banda até então -, é a própria “Drive My Car.” Mas sejamos francos: se alguém brilha com a força de um astro ao longo de todo o disco, esse alguém é Lennon.
Lennon sempre se assemelhou a uma espécie de peixe fora de água ao ver-se obrigado a entoar ié-iés de amores adolescentes bonitinhos de arco-íris, território no qual McCartney sempre pareceu mais confortável. De nariz empinado e olhar desafiador, carregava aos ombros uma história de vida pesada que lhe causava tormento: vivia com a cabeça feita em nós de desgraças e confusões e foi em Dylan, em 1964, que encontrou um farol: não apenas uma amizade que acabou por cultivar em anos futuros, mas uma espécie de chamamento – “é isto que tenho de ser”. Em Rubber Soul, Lennon entornou a alma na guitarra e no microfone pela primeira vez, e foi esta abertura perante a música, o estúdio enquanto sala de terapia e o converter das suas emoções espinhosas em letra e melodia que nos permitiu ouvir, em Rubber Soul, Lennon num dos seus picos de genialidade. Em “Nowhere Man”, olha-se ao espelho através de uma melodia a pingar coros melancólicos e uma letra que tanto o repudia como o aceita; em “Girl”, talvez a faixa mais fugaz dos Beatles até à data, expele para o microfone os tormentos muito adultos de uma relação com um objeto de afeto verdadeiramente demoníaco – a sua voz rouca verte sexualidade, enquanto os restantes Beatles entoam ao microfone, sempre gozões: “tit-tit-tit-tit-tit-tit-tit-tit”. Em “In My Life”, oferece uma reflexão de uma profundidade invejável acerca da vida, da morte, das relações nas quais tropeçamos pelo caminho: a melodia que acompanha o poetismo das suas palavras é levada a roçar a perfeição aquando George Martin se debruça sobre o piano para tocar uma minúscula composição inspirada por Bach, fazendo o som das teclas lembrar um cravo. Com “In My Life”, os Beatles marcavam uma partida para novos mundos que ninguém conseguiria imaginar os quatro de Liverpool, surgidos há um piscar de olhos, alcançar.
E Harrison? O mais novo dos quatro, frequentemente ignorado, posto de lado, recebido com um encolher de ombros, acabou por se revelar sem dúvida a mente mais criativa dos quatro. Pendulado algures entre o apetite pop, ocasionalmente piroso, de McCartney e a alma torturada de Lennon, que tendia para cair para o narcisismo desastroso, Harrison observava o mundo de boca calada e de guitarra na mão, e convertia-o em melodias que revelavam uma mestria e talento que por vezes chegava a ultrapassar a famosa dupla que lhe obstruía a passagem. Desde muito cedo, a sua lírica revelava um à vontade com as palavras, com o mundo e consigo mesmo, – e um grau de espiritualidade que apenas viria a aumentar com cada disco – lírica essa apenas suplantada pelo seu tato musical enquanto guitarrista e não só.
Em Rubber Soul, Harrison assina apenas duas músicas: a socialmente consciente “Think For Yourself”, disfarçada habilmente de cantiga de amor, e “If I Needed Someone” – talvez onde a influência dos Byrds se revele mais aguçada em todo o disco. No entanto, é de Harrison um dos momentos mais importantes e que marca o estatuto nobre de Rubber Soul na consciência musical do século XX. Lennon gravara “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)”, um tema tão caricato como profundamente melancólico, no qual cantava, ao longo da melodia pachorrenta, a história de uma mulher que lhe oferecera casa para desaparecer na manhã seguinte. Seria mais uma música admirável a preencher o catálogo da banda: mas graças a Harrison, não é só uma música boa: é uma música importante. O guitarrista, cujo fascínio com a música, religião e estilo de vida indiano crescia de dia, apaixonara-se pela cítara: foi ele que a trouxe para o estúdio londrino em 1966 e a grudou à melodia dylan-esca de Lennon – e assim se fez história. O uso da cítara em “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)” é geralmente considerado o primeiro uso do instrumento numa composição ocidental: e foi com este ato inocente que Harrison despoletou uma moda de utilização de instrumentos e arranjos tipicamente orientais na música anglo-saxónica.
Rubber Soul não é apenas um bom disco. Nem é apenas um excelente disco; é um disco essencial. Não é um disco que se recomende; é um disco obrigatório. Foi com Rubber Soul que Paul, John, George e Ringo se catapultaram para a outra margem, para um mundo desconhecido que haviam de pavimentar para outros atos futuros. Nunca mais nada foi o mesmo para os quatro rapazes de Liverpool, nem para ninguém. Desde o pop gourmet de McCartney, à introspeção esquizofrénica de Lennon, à sensibilidade de Harrison – até ao carisma de Ringo, que abandona humildemente os pratos para emprestar a sua voz nasalada à bem-disposta “What Goes On” – não seria possível se faltasse qualquer um dos seus ingredientes, distintos e todos necessários.
Em 2016, Rubber Soul passou a prova final: soa tão atual, tão importante, e, provavelmente, tão surpreendente no percurso da história dos Beatles como soou há mais de cinquenta anos. Para sempre.
Paul is dead! – marcio “osbourne” silva de almeida – jlle/sc