O pretexto foi a publicação do livro “Da Weasel – uma Página da História”. O local do crime foi Almada velha, como não podia deixar de ser. Com o mentor da banda, João Nobre, e a arguta escriba, Ana Ventura, fomos jogando conversa fora: sobre a herança dos Xutos, as dinâmicas internas, o politicamente incorrecto, a escola da rua… Três ideias foram reaparecendo: a impureza, a independência e a verdade de todo um percurso.
Altamont: Ana, tu escreveste também outro livro de memórias, sobre os Xutos, e dizes agora neste teu novo livro que os Da Weasel são os grandes herdeiros dos Xutos, a nível do carinho, da importância, da popularidade…
Ana Ventura: Essa ideia roubei-a ao Zé Pedro. Ele dizia que depois dos Xutos os Da Weasel eram a grande banda portuguesa, por aquilo que faziam em disco, e sobretudo por aquilo que faziam em palco. É engraçado porque no livro dos Xutos o Kalu fala variadíssimas vezes dos Da Weasel, do género: “se os Da Weasel fizeram um upgrade no espectáculo, para o ano os Xutos têm que cobrir a parada”…
Altamont: Quase a competição saudável que havia entre os Beatles e os Beach Boys…
Ana: Sim. O Zé Pedro e o Kalu, sendo pessoas muito diferentes, tinham abordagens diferentes na forma como encaravam os Da Weasel, mas davam-lhes ambos a mesma importância. Durante os doze anos em que os Da Weasel estiveram arredados do palco, se calhar podemos ter duvidado até que ponto é que eles poderiam ser tão – dentro de géneros completamente diferentes, claro – herdeiros dos Xutos. Se houve coisa de que o concerto do NOS Alive mostrou é que o são efectivamente. Não é fácil uma banda ultrapassar gerações, e isso foi uma coisa que os Xutos já tinham provado que era possível em Portugal, e no NOS Alive os Da Weasel provaram que também o conseguem fazer. Tinhas pais, filhos, gerações diferentes a assistir ao concerto.
João Nobre: Vou fazer aqui uma inconfidência. O Kalu, quando anunciámos a data do NOS Alive, ele disse à agência e à banda para não marcar nenhum concerto para esse dia, porque ele queria estar no NOS Alive…
Altamont: Isso é muito Xutos…
Ana: Muito Kalu…
João: Encheu-nos o coração.

Altamont: Ana, tendo tido tu o privilégio de teres recolhido as memórias destas duas bandas-charneira, que semelhanças e que diferenças é que encontras entre os dois percursos?
Ana: Em primeiro lugar, os Xutos nunca acabaram. Isso faz muita diferença. Por mais dificuldades que os Xutos foram tendo – se estares num casamento é difícil e são duas pessoas, estares numa banda com cinco ou seis, ainda é mais complicado –, nunca pararam. No caso dos Da Weasel, havendo esse fim, e agora este reencontro, essa é a grande diferença. Porque de resto são duas bandas que nascem com um sonho, que nascem com uma vontade de fazer uma coisa diferente, que vêm do underground e chegam ao mainstream, mas chegam lá sem vacilarem naquilo que era o seu propósito original, e que chegam aos maiores palcos do país…
Altamont: E que chegam ao português comum…
Ana: Sim. E às crianças. Essas são as grandes semelhanças. A grande diferença é um dos percursos ter tido uma interrupção.
Altamont: João, revês-te nestas analogias entre os Xutos e os Da Weasel?
João: Não me cabe a mim responder a isso. O que eu acho é que é admirável e honroso, e deixa-me muito orgulhoso, que quer o Kalu, quer o Zé Pedro, de quem eu sou grande fã, tenham dito essas palavras sobre a banda porque sou daqueles que foi ver os Xutos ao Rock Rendez Vous, é uma honra e um privilégio esse elogio. Sou fã em primeiro lugar, sempre o fui. Lembro-me de quando fizemos uma versão para os Xutos. Foi a coisa mais incrível que tinha feito até então.
Ana: E essa versão é incrível… (João mostra os pêlos a eriçarem-se)
João: Os Xutos merecem tudo o que têm alcançado, e tudo o que fizeram, merecem os maiores props da doninha, mas não me cabe dizer mais nada…
Altamont: És mais low profile, não gostas muito de holofotes. A ideia com que eu fiquei ao ler o livro – e eu não tinha essa noção, por seres mais arredado das “luzes” – é que tens um papel decisivo a urdir tudo na sombra. Ana, tinhas essa consciência?
Ana: Sim, essa parte eu sabia perfeitamente. Aliás, sou eu que vou dizer aos outros: “o João é o gajo chato da banda, não é?”. Mas era preciso haver alguém a tomar as rédeas da coisa, e não deixa de ser curioso que o próprio Carlão e o próprio Virgul só se tenham apercebido da importância do trabalho de bastidores do João depois de se lançarem nas suas carreiras a solo, percebendo então que tinham sido uns privilegiados durante os anos dos Da Weasel, em que não tinham estado preocupados com coisa nenhuma porque estava o João a pensar nisso. Teres um João ao teu lado quando tens que fazer esse tipo de trabalho é espectacular, e eu não fui parva, usei esse mesmo lado do João, e por isso é que a capa do livro está tão bonita, não é? (risos)
Altamont: O que é engraçado é que esse teu estatuto é reconhecido por todos na banda. Quando no livro se pergunta ao Quaresma qual é o segredo dos Da Weasel ele responde: “o Jay”. Imagino, João, que para ti isso seja uma faca de dois gumes. Por um lado, devias gostar no sentido de seres um perfeccionista, podendo assim fazeres as coisas como querias, e bem feitas… Consideras-te um control freak?
João: Ya… (risos).
Altamont: Por outro lado, às vezes, devia trazer-te um enorme desgaste. Como é que lidas com essas duas faces?
João: Sim, eu devia ter-me divertido muito mais… (risos)
Altamont: Se voltasses para trás, terias tido mais borgas?
João: Sim, se calhar. Ir gravar, toda a pré-produção de um disco, vocês não fazem a mínima ideia do que é uma pré-produção, uma coisa muito desgastante, consome-te imensa energia. E depois tenho de lidar com amigos e com família, não é fácil. Se fôssemos aquele formato de “olha, temos que facturar X para o ano, não vais a minha casa, quero lá saber de ti, mas manda-me a maquete, a gente junta aqui as coisas, e pronto”… Não, torna-se tudo muito mais complicado quando tens amigos do coração, e o teu irmão de sangue, a darem-te dores de cabeça gigantescas. Quando falo de uma pré-produção é uma das muitas fases da engrenagem. Há outras coisas. Há a estrada, há os ensaios, há os ensaios gerais para grandes produções, há um manancial tremendo de situações complicadas. Fica tudo mais complexo quando há este tipo de relação. Agora, quando digo que me devia ter divertido muito mais é precisamente por causa disso. Houve vezes em que estava demasiado preocupado com o meu irmão quando, se ele não fosse o meu irmão, e fosse apenas um motivo de interesse para eu facturar naquele ano, se calhar estava-me a borrifar, como há para aí ao pontapé. Quando digo que me devia ter divertido mais é mais por causa disso, porque adoro o que faço e o que fiz, não me arrependo de nada, mesmo dos disparates…
Altamont: Repeti-los-ias?
João: De certeza absoluta. Foram esses acidentes, e essas chatices, e esses desgostos que fizeram o caminho dos Da Weasel. Portanto, se mudássemos essas vírgulas, se calhar teria sido tudo diferente. Não consigo viver sem stress. Faz-me falta. Tenho de stressar porque senão não funciono. Agora, houve alturas que foi demasiado, no limite do razoável.
Ana: A verdade é que te divertiste muito na mesma…
João: Claro.
Ana: A partir do momento em que o concerto começava, relaxavas e desfrutavas.
João: “Baby”, o concerto é uma hora e meia, o processo todo são semanas e meses… Portanto, nesse período desligava. E, sim, é verdade, mal terminava partia o camarim todo e bebia as garrafas de vodka todas que lá havia. (risos)
Altamont: Os Da Weasel começaram no vosso quarto, tu a lançares o desafio ao teu irmão, e um repto que para ele era estranho, “tu vais rappar e escrever”. “O quê!? Eu não sei fazer isso!” Como é que percebeste que ele tinha este potencial?
João: Não consigo agora precisar mas ele sempre foi um miúdo muito à frente, tinha um léxico extraordinário para a idade, batia-se muito bem com os mais velhos, desarmava um tipo cinco anos mais velho em cinco segundos, tinha um bom poder de argumentação. Lia muito, escrevia. Nós consumíamos muita BD, muita ficção, muitos filmes, e ele sempre teve muita bagagem cultural, dava-se connosco, moldou-o estar sempre com os mais velhos, o que na altura fazia grande diferença. Um miúdo de onze aninhos estar com os miúdos de quinze, dezasseis, não é muito comum. Eu via-o a fazer esquiços. Qualquer conversa que tínhamos sobre uma matéria qualquer, sobre um filme, por exemplo, dava perfeitamente para perceber que ele tinha ali gasolina para arder. Foi fácil. Ele escrevia bem. Já sabia escrever em inglês antes de ter aulas, desde muito novinho. E depois tínhamos as influências dos artistas que admirávamos, como os Dead Kennedys, com as suas letras colossais, em que nos revíamos. Ele tinha esse imaginário todo na cabeça. De maneira que foi só dizer: “põe lá isso então no papel”, “o que é que achas sobre este assunto?”, e ele desenrascava-se.
Altamont: Ana, o que é que achas do estilo de escrita do Carlão?
Ana: Não gosto nada. (riso) O que é mais interessante é que consegues acompanhar o crescimento do Carlão, consegues perceber o momento em que o Pacman passa a Pac, e depois a Puto P, e finalmente se torna Carlão. E compreendes muito bem as vivências dele, a forma como se foi conhecendo como autor, como foi descobrindo a sua voz, e como foi ultrapassando os seus medos, e as suas dúvidas, e as suas eternas auto-questões, e auto-sabotagens, que foi fazendo até chegar àquele que é o grande canto do cisne, que é o Amor, Escárnio e Maldizer, onde ele é dono absoluto da palavra. Apesar de ser o álbum onde o Carlão canta pela única vez palavras que não são dele, com o “Negócios Estrangeiros”. De resto, tudo aquilo que o Carlão cantou nos Da Weasel foi sempre escrito por ele. Mas no último disco é onde está, para mim, o expoente máximo do Carlão enquanto escritor.
Altamont: Quem escreveu este livro: a jornalista objectiva ou a fã apaixonada e parcial?
Ana: Mais a jornalista objectiva. A fã tenta ter alguma rédea na sua imaginação no prólogo, mas de resto é totalmente a jornalista. Eu acho que, na forma como eu montei o diálogo deles, não percebes quais são as canções das quais eu gosto, quais são os meus álbuns favoritos, quais foram os concertos aos quais eu assisti…
João: Concordo em absoluto. Até porque o fã tem uma relação amor/ ódio com o seu ídolo. Pode-se tornar o maior inimigo da banda…
Altamont: Como o fã hardcore que quando começa o “Re-Tratamento” desvia o olhar, desiludido… (risos)
Ana: Eu não gostei do “Re-tratamento” a primeira vez que ouvi. Depois, entranhou-se, é claro. Mas a primeira vez: “olá, nina, quero tratar de ti!?”
João: Acredita que montes de amigos meus, e do meu irmão, em particular, que foi quem escreveu a letra, disseram “Man, o que é que estás a fazer? Tu perdeste o juízo!?”. Essas mesmas pessoas, dois anos depois, mudaram de opinião…
Ana: Hoje em dia gosto imenso do “Re-Tratamento”, mas no primeiro impacto não gostei.

Altamont: João, dizes uma coisa interessante sobre o “Re-tratamento”, que é uma canção que chega às crianças, e isso é quase como se fosse a definição de uma música comercial, essa capacidade de chegar até aos putos. Só que depois dás a volta e dizes que isso é uma coisa boa – que tu, como publicitário, louvas o facto de a mensagem ser tão clara que até chega às crianças…
João: Não foi desenhada, nem pensada, nem arquitectada dessa forma, e isso traz um sabor ainda mais especial. Eu próprio, em relação a partes de determinadas letras, cheguei a falar com o meu irmão, “pá, porque é que em vez disso não fazemos aquilo?”, e o meu irmão, “nan”. E realmente quando vês o resultado é absolutamente genuíno o que ali está. Acontece o mesmo com o “Doía”, é sincero, se fosse de outra forma seria outra coisa qualquer, e, de facto, é surpreendente como funcionou.
Altamont: No livro dizes isso – entra o Virgul, com dezasseis anos, e a letra é inocente, como seria de esperar de um puto com essa idade e apaixonado. E depois colocaram essas questões, se passava ou não no crivo, e o teu critério foi a verdade, é o que este miúdo com sangue na guelra realmente estava a sentir. Se é verdadeiro passa…
João: Exactamente. Tu não podes contrariar a tua essência, o teu ADN, porque a partir do momento em que começares a fazer isso aí a música está programada, desenhada de uma ponta a outra para funcionar de uma determinada fórmula, uma fórmula onde não podes ir para ali, não podes fazer isto, tens que encurtar ali, não podes dizer as coisas dessa forma. Tanto no “Re-tratamento”, como no “Doía”, eu próprio, como acabei por confessar, cheguei a falar com o meu irmão sobre algumas passagens… mas se tivéssemos feito ao contrário, aí, sim, iríamos estar a desvirtuar o que fazemos de melhor, que é sermos francos e genuínos.
Altamont: A verdade e a liberdade como valores…
Ana: Premissas fundamentais à essência dos Da Weasel…
Altamont: Às vezes, escreveram letras controversas, nomeadamente em relação à cor da pele e à classe social. Lembro-me, por exemplo, do “Cachimbo da Paz”. Entretanto já passaram uns aninhos, e hoje cada vez mais há a cultura do cancelamento do politicamente incorrecto. Com o actual contexto escreveriam da mesma forma ou teriam de ter alguns cuidados para não ferir susceptibilidades?
João: Não. Do More [Than 30 Motherfxxxs] ao Amor, Escárnio [e Maldizer] os conceitos das canções sempre foram inegociáveis. Uma coisa é falares sobre uma vírgula, uma palavra, isso é legítimo, se as bandas não funcionarem assim o que seria? Agora, hoje em dia é um exercício um bocado lixado porque não estamos a criar neste momento, mas não me parece porque a partir dessa altura os Da Weasel deixariam de fazer sentido.
Altamont: Mas tens a consciência de que se o fizessem poderia cair muita gente em cima?
João: Sim, tenho consciência de que o “Niggaz” hoje em dia não iria passar em lado nenhum, mas fá-lo-íamos na mesma.
Ana: Quando os Da Weasel editaram o Amor, fui eu que fiz a entrevista para a Blitz, em 2007, e nessa altura perguntei-lhes precisamente pelo “Niggaz”, se eles não achavam a letra problemática. Eles acharam que não, que fazia todo o sentido, e, de facto, fazia-o. É o retrato de uma altura. Era para eles uma não questão…
Altamont: Sim, nunca há mecanismos de auto-censura em vocês. Hoje em dia, cada vez mais todos nós, mesmo os mais tolerantes, começamos a auto-censurar-nos… Jornalista musical Ana Ventura, se daqui a alguns anos te pedissem para escreveres, numa história da música popular portuguesa, qual o grande legado histórico dos Da Weasel, o que dirias?
Ana: Os Da Weasel foram a primeira banda portuguesa que não teve medo de fazer o seu próprio género musical. Esse é o grande elemento que os distingue. Os Da Weasel são hip-hop e não o são, são hardcore e também não, são os Da Weasel e ponto final. São o que estas seis pessoas fazem quando se juntam. Estas seis pessoas trazem influências muito diferentes e eles, não sabemos muito bem como, conseguem aglutiná-las naquilo que depois se torna a personalidade dos Da Weasel. E aí tens o lado mais funk do Guilherme, tens o lado mais pop do Virgul, tens o lado mais hardcore do João e do Quaresma, tens o lado hip-hop do Carlão, e tens toda a estética – que vai do hip-hop mas também passa pelo metal um bocadinho mais suave – do Glue. Isto parece tudo coisas que não se interligam mas quando os seis se juntam tudo faz sentido. Essa é que é a grande marca dos Da Weasel, eles criaram o seu próprio estilo. Sobretudo numa altura em que os géneros não se misturavam. Se eras do metal eras do metal. Isto não é só em termos de roupa, era também em termos de género musical. Em Portugal, ainda estávamos longe de encontrar a popularidade do encontro entre os Run DMC e os Aerosmith. Os Da Weasel tiveram vontade de fazer isso e fizeram. Isso começou logo no quarto dos irmãos Nobre. Se eles em ’86 foram ver os Iron Maiden e depois se apaixonaram pelos Public Enemy, porque não fazer uma coisa com os dois ingredientes? Em Portugal ninguém fazia isso, essa é a marca dos Da Weasel.
Altamont: João, esse amor à impureza, e essa aversão ao tribalismo, achas que é a essência dos Da Weasel?
João: Talvez. Repara. Todo o meu crescimento musical e social foi exactamente assim, e o dos meus pares também – o Quaresma, o meu irmão, o próprio Glue (o Guilherme e o Virgul talvez menos). Tal como as outras bandas todas aqui de Almada, aliás. Podias ser o gajo mais hardcore mas ias jantar com o gajo do hip-hop. Éramos todos amigos. Havia discussões saudáveis, claro, sempre aqueles beefs, mas o gajo mais gótico não se sentia envergonhado por estar acompanhado de um gajo mais ligado ao hip-hop (embora, de uma forma transversal, fosse isso que acontecesse). Tivemos essa vivência. Aliás, ainda hoje recebemos elogios de músicos dos quadrantes mais inesperados. “Mas tu gostas de Da Weasel!?”, “Ya.” “Dessa é que eu não estava à espera!”. Isso sempre foi uma constante na nossa vida. Era capaz de ouvir Michael Jackson e ao mesmo tempo os Morbid Angel. É uma coisa de que todos nós nos orgulhamos muito.
Altamont: Os Da Weasel são também uma história de amor entre dois irmãos?
João: Oh, pá. Se não fosse… a história seria completamente diferente, como é lógico. A longevidade, a tolerância, numa banda onde não houvesse aqui qualquer tipo de ligação de sangue, a história seria radicalmente diferente. Aliás, esta banda começou exactamente porque éramos irmãos…
Altamont: Porque achavas que os Da Weasel seriam uma coisa boa para o teu irmão…
João: Absolutamente. Dando-lhe um foco…
Ana: E porque também era um alvo fácil. (risos)
João: E facilmente manipulável. Não há nada melhor do que teres ali um barro de primeiríssima qualidade para moldar… (risos)

Altamont: Os Da Weasel confundem-se com Almada?
João: Sim. Um não existe sem o outro.
Ana: Há uma coisa nos Da Weasel que não é de Almada: o Guilherme. (risos)
João: Mas o Guilherme também só aparece mais tarde… São indissociáveis. Porque é a nossa vivência, é a nossa história, somos o reflexo dessa altura, desse tempo. Era um viveiro incrível de bandas, de criatividade. Somos daquele tempo de ver bandas no salão da Incrível Almadense, que era um spot onde bandas de todo o país, e estrangeiras, vinham. Qualquer tournée que se prezasse passava religiosamente por Almada. Nós crescemos com isso tudo. Somos do tempo da garagem, da partilha da cassete, do vinil. À mesa onde estamos podia na altura estar sentado um gótico, um metaleiro, um gajo do hip-hop, outro do hardcore, e encontrávamo-nos todos no mesmo sítio, falávamos dos géneros de cada um, discutíamos, gozávamos uns com os outros, mas não deixávamos de estar juntos e de celebrar a música em conjunto. Hoje isso seria ficção científica.
Altamont: Hoje as coisas são mais tribais?
João: Absolutamente. Hoje estão mesmo fraccionadas. Um exemplo: hoje não me estou a ver ir a um festival em que não me reveja. Na altura eu fazia isso. “Ok, não é o meu género, mas vou lá. Quero ver. Quero aprender.” Arriscávamos mais. Ia parar ao Johnny Guitar, a banda que estava lá era pop e um gajo era do metal, não podia dar o braço a torcer… mas, se calhar, vinhas de lá com o disco. Hoje fazeres isso!? Numa altura em que eras tão permeável, absorvendo tudo, era fantástico ires beber a todo o lado.
Altamont: Quando vocês apareceram, a malta do hip-hop era muito sectária, achava que vocês eram impuros – e era esse o critério, o grau de pureza. Hoje continuam as mesmas críticas ou o mundo do hip-hop tornou-se menos sectário?
João: Hoje já há alguns meios e publicações que nos põem lá na prateleira, já dão o destaque. Durante um grande período de tempo foi diferente: “não vamos pôr isto aqui porque isto não tem nada a ver connosco”.
Ana: É um pouco como no fado. Os puristas acham que aquele determinado género tem de ser feito daquela determinada forma e não se pode mudar uma vírgula. No início o hip-hop era um bocado assim também. A questão é que o hip-hop também evoluiu. Nestes trinta anos houve muita coisa que mudou no hip-hop. Hoje já podes encontrar muita melodia no hip-hop, por exemplo. Se calhar até nisso os Da Weasel foram visionários…
Altamont: João, o Virgul só entrou no segundo álbum, 3º Capítulo, pelo que a partir de ’97 passa a ser um ingrediente importante, com uma dinâmica muito gira Pacman / Virgul: o Virgul mais açucarado, mais poppy, e o Pacman mais ácido, mais limão. Achas que esse limão com açúcar passou a integrar o próprio conceito de Da Weasel?
João: Claro. Não há exemplo mais feliz em termos da tal mestiçagem do que esse. O Virgul é completamente diferente do meu irmão, e o meu irmão é completamente diferente do Virgul. É essa diferença que faz o que nós somos, e o que sempre fomos. Não podias ter dado melhor exemplo para reflectir exactamente aquilo que nós somos, uma ordem no caos.
Ana: Se há exemplo perfeito daquilo que o Virgul trouxe aos Da Weasel aparece logo no “Doía”. A dinâmica entre as entradas do Virgul e as entradas no Carlão revela logo o que os Da Weasel iriam ser com o Virgul a bordo.
João: Até a nível de composição já me podia atirar para coisas que até lá não conseguia explorar. Agora, com aquele activo, “epá, então nesta música podemos ir para o sítio X porque aqui temos uma zona de conforto onde o Virgul pode actuar.” Houve mais espaço para explorarmos coisas que até aí não tínhamos explorado.
Ana: É o mesmo tipo de revolução que acontece no Re-definições com a entrada do Glue, que também lhes permite ir por caminhos que até aí não tinham conseguido ir, em disco e sobretudo em concerto. Aquilo que os Da Weasel são hoje foi sempre feito com pequenas revoluções, que foram completamente abraçadas, mas sem nunca tirar a essência com que tudo começou em ’93 no quarto dos irmãos Nobre. Foram aparecendo novas formas de mostrar a essência.

Altamont: Esse sentido pop que tu assumes orgulhosamente, num certo sentido só nasceu com o primeiro álbum, Dou-lhe Com a Alma, e mesmo assim só no 3º Capítulo é que se expandiu. O EP era muito experimental, quase anti-pop…
João: Lá está, se o Virgul estivesse lá, na génese, se calhar teria sido tudo radicalmente diferente, porque a Yen tinha as suas próprias limitações, não dava para puxar a música para uma determinada paisagem. Imagina que o Virgul tinha entrado logo. Se calhar, “God Bless Johnny” não seria o que é…
Altamont: Ana, há uma mística enorme à volta do “God Bless Johnny”. Há até malta mais indie que diz “os Da Weasel é que eram na altura do ‘God Bless Johnny’, depois aburgueseram-se.” Para ti é uma canção importante?
Ana: É uma canção que continua a fazer tanto sentido em 2022 como fez em 1994, daí estar naquele frenesim imparável que foi o final do concerto do NOS Alive, tocada com a mesma intensidade que tinha na altura em que foi feita. Se não fosse uma canção tão importante, e tão marcante, e tão boa, em 2022 já não faria qualquer sentido.
João: É incrível como é que sobreviveu tanto tempo e é requisitada.
Altamont: Vocês vêm de um bairro de classe média, cresceram perfeitamente integrados, mas sempre tiveram – nomeadamente nas letras do teu irmão – um enorme traquejo de rua – na gíria, no imaginário. Achas que um dos legados dos Da Weasel é levarem esse universo da rua para o mainstream, para pessoas que, não tendo tido essas mesmas vivências, sentem que também estão lá por osmose?
João: Ainda hoje há pessoas que dizem: “aprendi montes de coisas, termos, expressões, etc., com os vossos discos”. Almada pertence à grande Lisboa, de maneira que isto é ainda mais notório noutras regiões do país, como a malta do Porto, ou de Braga, que diz: “não fazia puto de ideia do que é aquilo queria dizer, mas à conta das vossas expressões fiquei a conhecer um novo mundo”. Sim, embora o nosso slang não tenha sido o mais hardcore que existe por aí. Mas ainda assim foi uma espécie de descoberta para muita gente.
Altamont: Ana, achas que isso dá coolness aos Da Weasel, essa ligação a uma gíria e vivência de rua?
Ana: Não havia forma de ser de outra maneira. Ao colocarem na música que fazem a sua própria vida, não podiam expressar as suas experiências de outra maneira. E eles “viviam” nas ruas de Almada, e aquilo que acabas por sentir naquelas canções são essa verdade.
Altamont: A propósito de verdade, e para finalizar, ao ler este livro, quando penso no que são o Da Weasel vêm-me à cabeça três coisas: impureza, independência e verdade. Qual das três escolheriam como palavra-chave?
João: Agora, escolho a impureza. O contrariar e o desafiar e a disrupção. Por isso, impureza.
Ana: Engraçado, achei que tu fosses escolher “independência”. Para mim é a “verdade”. É o que os Da Weasel foram desde o início. O sonho foi um sonho verdadeiro, o caminho foi um caminho verdadeiro onde eles nunca se renderam às pressões, a coisa nenhuma.
Altamont: “porque eu não me rendo, porque eu não me vendo nem por ideais, nem por dinheiro”…
Ana: Voltamos aos Xutos… E foi com a mesma verdade que eles fizeram a pausa quando tiveram de a fazer. E foi com a mesma verdade que eles regressaram quando tiveram de regressar. Portanto, para mim, é a “verdade”.
Todo o especial sobre os Da Weasel pode ser acompanhado aqui.