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30 anos de Nevermind: como os Nirvana mudaram a pop

O segundo álbum dos Nirvana, Nevermind, é muito mais do que um disco perfeito: é o terramoto que abalou uma indústria e a bandeira que definiu uma geração.

Na altura não reparámos mas em 1990 algo pairava no ar. Eram ínfimos os sinais mas inequívocos para quem os quisesse ler: um desgaste evidente do hair metal e novas bandas “esquisitas” rodando na rádio e na MTV: Jane’s Addiction, Faith no More, Alice in Chains… Algo estava prestes a explodir mas ninguém o sabia ainda.

A independente Sub Pop foi determinante neste ataque ao antigo regime, vendendo Seattle como a nova capital do rock, e inventando um nome mágico para a sua movida: o grunge. A máquina do hype funcionou tão bem que bandas então obscuras – como os Soundgarden, os Mother Love Bone e os Nirvana – começaram a atrair a atenção das grandes editoras. Porém, por mais ameaços de ruptura que já houvesse, ninguém conseguira prever as proporções sísmicas do sucesso de Nevermind

Os Nirvana já haviam editado Bleach em ’89 mas nem a própria Sub Pop acreditou muito no álbum, apostando todas as fichas nos Mudhoney. Não é só a produção austera de Jack Endino que torna Bleach mais difícil, é também a sua estética anti-pop à Black Flag, privilegiando a dissonância à melodia (a candura ié-ié de “About a Girl” é uma saborosa anomalia).

Felizmente para o mundo que no disco seguinte Cobain se livra dos seus estéreis preconceitos anti-pop. Se Nevermind é um disco mais interessante do que Bleach, é-o sobretudo pela sua imaginação melódica: todas as suas doze canções têm melodias cativantes e trauteáveis, que toda a gente da nossa geração sabe de cor. Claro que a entrada de Dave Grohl para a bateria e a produção cuidada de Butch Vig ajudam à festa, mas sem a grandeza melódica das canções Nevermind nunca iria a lado algum.

Butch Vig, o produtor de Nevermind

Muitos críticos levianos acusam o disco de ser demasiado pop, como se a melodia encantadora de “Come as You Are” fosse uma doença venérea. Chamam Nevermind de limpinho e maquilhado, uma putativa traição às credencias indie e punk dos Nirvana. Nada mais falso. A guitarra de Cobain é suja e distorcida, a bateria de Grohl provoca tremores de terra no Japão, os gritos de Cobain despejam cá para fora toda a sua alma. Se, de facto, Vig recorre a alguns truques de produção, como adicionar pistas suplementares de voz e de guitarra, fá-lo não para suavizar a estética mas para torná-la mais eficaz. Quando canções como “Smells Like Teen Spirit” e “Lithium” vivem da dinâmica suave/forte, a sobreposição de pistas ajuda a acentuar o contraste entre a doçura do verso e a violência do refrão. É verdade que foram os Pixies que inventaram este jogo de contrários, tão definidor dos anos 90 (“Tame” do Doolittle é o exemplo paradigmático), mas foi Nevermind que democratizou a inovação, levando-a a toda a gente. Os pseudo-punks apedrejam Nevermind pelo doubletracking, esquecendo que o disco dos Pistols está cheio de overdubs e que até os Ramones têm um disco produzido por Phil Spector. Morte aos hipsters moralistas, burocratas do gosto, intelectuais sem intelecto!

Nevermind tem outra virtude, a sua versatilidade. Nem sempre os Nirvana têm paciência para essas alternâncias entre brisa e furacão. Por vezes, querem apenas ser esmagadores do primeiro ao último segundo. É o que sucede com “Breed”, “Territorial Pissings” e “Stay Away”, cuja rapidez e brutalidade (próximas do hardcore) atravessam verso e refrão. É a oportunidade para Grohl mostrar o que vale, ruindo fachadas, demolindo paredões. Para aumentar a distorção de “Territorial Pissings” – o tema mais devastador de Nevermind e um dos mais acarinhados pelos fãs – Cobain liga a guitarra directamente à mesa de mistura, fazendo disparar todas as luzes vermelhas.

Novoselic começa “Territorial Pissings” com um chamamento hippie, um apelo à paz e ao amor. A sua voz gozona e a violência que entretanto irrompe não deixam dúvidas quanto à ironia: Nevermind não traz “love, peace and harmony”, apenas tédio, raiva e frustração. A geração X não é particularmente idealista, somos demasiado cínicos para isso. Se às vezes somos rebeldes é sempre com um distanciamento blasé, o crime capital é levarmo-nos demasiado a sério. A cumplicidade instantânea entre os Nirvana e a nossa geração decorre do anti-heroísmo de Cobain: é cool e está do lado certo, desprezando a ganância dos yuppies e o chauvinismo dos rednecks, mas tem a consciência aguda de que todos temos as mãos sujas, que a própria rebeldia é uma mercadoria como outra qualquer. “Smells Like Teen Spirit” é tanto um grito de guerra geracional, como um reconhecimento da nossa passividade. Here we are, now. Entertain us…

Kurt Cobain e Eugene Kelly (The Vaselines), no festival de Reading de 1991. Getty Images

Se os Pixies são uma referência incontornável, a verdade é que os Sonic Youth não lhes ficam atrás. Que o digam “Breed” e “Drain You”, ambos com os seus encantadores interregnos de ajavardanço atonal, claramente inspirados nas tropelias de Thurston Moore e Lee Ranaldo. Se, no essencial, Nevermind é um disco de punk pop à Buzzcocks (três ou quatro acordes, poucos rodriguinhos, chuta a bola e força), estes salpicos college rock (mais a armar ao pingarelho) só enriquecem o cardápio.

A polivalência de Nevermind ainda não acabou, falta falarmos das suas baladas acústicas, tão dolentes como macabras: as imortais “Polly” e “Something in the Way”. A viola foi comprada numa promoção da Worten e parece ligeiramente desafinada, o que torna tudo mais pungente. A voz é quase sussurrante, ardil velhaco para redobrarmos a nossa atenção a cada verso, chafurdando na sua morbidez. “Polly” foi inspirada num rapto sexual verídico, tornado ainda mais sinistro porque Cobain adopta o ponto de vista do violador.

“Something in the Way” – inesquecível o seu violoncelo dolente – é um tema central na mitologia dos Nirvana, pelas suas supostas ressonâncias autobiográficas. Sabemos hoje que Cobain nunca dormiu debaixo da ponte de Aberdeen, mas a realidade não anda muito longe: Kurt foi mesmo expulso de casa quando adolescente, tendo chegado a pernoitar numa sala de urgências hospitalares para não ter de dormir ao relento. “Não faz mal comer peixe / porque eles não têm sentimentos”, projecta-se Cobain nos pobres peixinhos, uma metáfora arrepiante de vazio espiritual. Em ruptura com o arquétipo tradicional da estrela de rock (o macho alfa omnipotente), Cobain mostra-se vulnerável, humano como nós, daí a nossa instantânea identificação.

Nirvana em entrevista à Rolling Stone com mensagem irónica de Cobain. Rolling Stone

Contra todas as expectativas, Nevermind chega ao topo da Billboard, vendendo dez milhões de discos nos Estados Unidos e trinta milhões no mundo inteiro. É o início da chamada era alternativa. Se a indústria não soubera prever o fenómeno Nirvana, depressa soube capitalizá-lo: tudo o que fosse vagamente roqueiro e esquisito vendia agora que nem pevides. E não falamos apenas dos companheiros de Seattle (Pearl Jam, Soundgarden, Alice in Chains) mas de toda a alternative nation (como Stone Temple Pilots e Smashing Pumpkins): todos estes nomes chegariam a número um. O que antes era subterrâneo é agora absolutamente mainstream.

Muito se falou do simbolismo de Nevermind ter desalojado Dangerous (Michael Jackson) do top: a nova ordem destronando o antigo regime, escreveu-se com pompa e circunstância. A tese é interessante mas tem um ligeiríssimo problema: não é verdadeira. A popularidade do putedo pop nunca foi beliscada. Se bandas excêntricas como os Red Hot Chili Peppers e os REM chegaram, de facto, ao topo de vendas, Whitney Houston e Céline Dion nunca arredaram de lá o pé. O novo mainstream era assim, esquizofrénico e bicéfalo, Cobain apalpando o rabo a Mariah Carey.

O que Nevermind de facto matou foi o hair metal. É hoje mítica a cena de “Wrestler” em que Mickey Rourke lamenta o desaparecimento dos seus queridos (Motley) Crue, culpando Cobain pela infâmia. Todo o grunge foi uma reacção contra a estética e os valores do glam metal: autenticidade contra o artifício, profundidade emocional contra o escapismo festivo, igualdade contra o chauvinismo misógino. De um dia para o outro, a laca no cabelo tornou-se proibida, as calças de licra ridicularizadas, o açúcar dos Poison o mais letal dos venenos.

Os Nirvana foram, talvez, a última grande lenda do rock, só possível porque nos media pré-internet de então ainda havia uma cultura pop centralizada: todos víamos os mesmos canais de televisão, todos líamos os mesmos jornais de música, todos ouvíamos as mesmas estações de rádio. Hoje, cada adolescente vive na sua bolha de streaming personalizada, a cultura fragmentando-se de tal forma que vai chegar o dia em que haverá tantos nichos como ouvintes.

Ora, eu velho do Restelo me confesso. Tenho saudades dos gigantes que chegavam a todos, unindo-nos na mesma paixão colectiva. Tenho saudades dos discos que rodavam de casa em casa, num lastro de peganhentas cumplicidades. Tenho saudades da primeira vez que ouvi Nevermind, tinha então 14 anos. Estávamos no autocarro alugado pela escola, prestes a partirmos em visita de estudo, quando um puto de outra turma pede ao paciente motorista para passar a sua cassete. Fiquei arrepiado. Nunca tinha ouvido nada assim. Era estranho e belo, melódico mas fúnebre, exótico mas convidativo. E enquanto os meus amigos falavam de miúdas ou de bola – blá, blá, blá, blá… -, eu só queria saber o nome daquela banda. Bizarra. Perigosa. Irresistível…

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