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Manuela Azevedo: A arte é um fim em si mesmo

Aproveitando o pretexto dos 25 anos de LusoQUALQUERcoisa, primeiro álbum dos Clã, estivemos à conversa com Manuela Azevedo. Falámos da finalidade da arte, dos polícias do gosto e do medo como inimigo da liberdade. Verbo fácil, afinal, sem problemas de expressão…

Altamont: Muitos de vós vêm do jazz, o LusoQUALQUERcoisa tem ainda esse lastro, mas a partir de Kazoo viraram-se para o chamado pop/rock, para o formato canção. Essa sofisticação jazzística original ainda se insinua, mesmo que discretamente, na forma como compõem e arranjam os vossos temas?

Manuela Azevedo: Não é tanto esse lado de sofisticação jazzística que se insinua no nosso trabalho mas antes a valorização do trabalho harmónico, do rigor rítmico e do prazer da “conversa” entre todos os elementos que constroem o arranjo das canções. Essa é, com certeza, uma herança das aprendizagens que alguns músicos dos Clã trouxeram do jazz.

São portuguesíssimos nas palavras (com alguns dos nossos melhores letristas burilando com mestria a nossa língua) mas anglo-saxónicos na estética musical. Ao contrário de bandas como os Dead Combo ou os Diabo na Cruz, é raro haver na obra dos Clã alguma ligação directa à música de raiz portuguesa (lembramo-nos do sample de Amália em “Competência para Amar” e pouco mais). Porquê esse afastamento em relação à nossa tradição musical?

Não se trata de um afastamento activo ou duma rejeição. Tem mais que ver com aquilo que é natural na busca do Hélder por novos caminhos de composição e o que desafia musicalmente a banda. E essas escolhas e procura devem-se muito à música que fomos (e vamos) ouvindo e estudando durante a nossa vida e que não foi, de facto, a música portuguesa de raiz mais tradicional.

Julgo que, actualmente, o contacto com as raízes da música portuguesa se faz com mais facilidade e menos preconceitos do que há umas décadas atrás. E isso, felizmente, tem trazido “contaminações” muito inspiradoras na música feita pelas gerações mais recentes.

Os Clã nunca foram muito políticos. Sempre foram mais virados para dentro do que para fora. Curiosamente, o vosso primeiro e último álbum são um bocado a excepção, LusoQUALQUERcoisa satirizando o Portugal modernaço de então, e Véspera espelhando os actuais tempos sombrios: a ascensão da extrema-direita, a catástrofe ambiental, o medo que paira no ar. No velho feudo entre a arte como transformação do mundo, e a beleza como um fim em si mesmo, sentem-se mais próximos de qual pólo?

Julgo que também noutros discos nossos se encontram olhares políticos sobre nós e o mundo à nossa volta. Por exemplo, o Kazoo – uma espécie de caderneta de cromos – desenha retratos bem cínicos de certas personagens da nossa sociedade e o Disco Voador, dedicado às crianças ou, como a Regina Guimarães lhes chamou, aos Supernovos, é também um álbum bastante político.

Mas é certo que não somos políticos no sentido mais ideológico do termo – de olharmos para a nossa arte de um modo mais comprometido com a acção política, instrumentalizando as nossas canções ao serviço de um desejo de mudar o mundo. Para nós, a arte é um fim em si mesmo. O eco político de algumas das nossas canções vem mais da reflexão inevitável que decorre de sentirmos na pele o que a história nos traz e do impacto dessas mudanças na nossa vida quotidiana e artística. E o facto de trabalharmos com autores que são também pessoas muito atentas e de radar muito afinado no seu olhar sobre o mundo, ajuda-nos a encontrar as palavras certas para podermos cantar o que nos inquieta mas também o que nos apaixona.

Quando pensamos em Clã pensamos em bom gosto – nas melodias, nas palavras, nos arranjos. Por outro lado, participas no “Deixem o Pimba em Paz”, com o Bruno Nogueira, onde de alguma forma essa dicotomia bom gosto/mau gosto é posta em causa. Em que ficamos? Do lado das elites culturais que policiam o gosto? Ou o belo é misterioso, revelando-se nos lugares mais insuspeitos?

Nunca ficaremos do lado de quem policie o gosto! A liberdade é uma das condições mais importantes para se fazer arte e isso implica ser-se livre de preconceitos e de dogmas sobre o que é de bom ou de mau gosto, sobre o que é alta e baixa cultura.

Chamaste um dia a tua voz de “rouca e escangalhada”, quando na verdade o grão da tua voz é um dos timbres mais bonitos da música popular portuguesa. Por teres esse corpo e textura na voz, sentes uma identificação especial com a música negra americana?

Para poder sentir uma identificação especial com algo tão rico, antigo e profundo como a música negra americana, não basta ter uma voz rouca. Teria que aprender muito! E acho que só uma vida não chegaria!…

Uma das coisas que nós, fãs, gostamos nos Clã é a de não se armarem em vedetas, parecendo humanos como nós (uma virtude tipicamente portuense), apesar de se transcenderem quando sobem a um palco. Não obstante essa vossa postura low profile, todas as bandas têm histórias para contar… Qual foi o vosso momento mais “bad ass” rock’n’roll?

Não direi que foi um momento “bad ass”, mas foi uma experiência rock’n’roll quase religiosa – o nosso concerto em Vilar de Mouros, com chuva a cair a cântaros e todo o público connosco, a saltar e a cantar.

Para coroar esta noite gloriosa, pudemos ainda assistir a um concerto extraordinário de Neil Young! Inesquecível!

Têm uma nova secção rítmica, substituindo os excelentes Pedro Rito e Fernando Gonçalves pelos exímios Pedro Santos e Pedro Oliveira. O groove tem agora um sabor diferente ou sentem uma continuidade?

É claro que o Pedro Santos e o Pedro Oliveira trouxeram novidade à banda, com as suas experiências e a forma como fazem música. Mas o facto de serem também grandes conhecedores do trabalho dos Clã e terem estudado ao detalhe o nosso repertório mais antigo, fez com que quase não sentíssemos o choque da mudança daquilo que é o motor duma banda – a sua secção rítmica. São dois músicos talentosíssimos, muito trabalhadores e pessoas bem-humoradas e impecáveis! Tivemos muita sorte em os ter encontrado.

Diz a primeira coisa que te vem à cabeça quando dizemos:

Arrependimento. Há que evitá-lo, sempre que possível.

Felicidade. Casa.

Medo. Nos dias de hoje, é um monstro com muitos rostos. É preciso combatê-lo para não deixarmos de ser livres.

Saudade. Saudades do palco.

 

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