Faz hoje um mês que caiu o muro de Berlim, diz o circunspecto locutor da rádio com a sua voz de microfone. Mudas logo a estação que a política faz-te sempre lembrar senadores pedófilos, não sabes bem porquê. Ouves agora “Like a Prayer”- o último êxito da lúbrica Madonna. Antes a pedofilia, pensas tu, enquanto rodas outra vez o botão. Já estás suficientemente lixado por estares parado no trânsito há eternidades; mas o que verdadeiramente te exaspera, até ao quase-suicídio, é não encontrares uma única canção de jeito em toda a porra da rádio. “The Best” da Tina Turner, “Another Day in Paradise” do Phil Collins”, “Every Rose Has its Thorn” dos Poison, “Heaven” dos Bon Jovi, todas estas canção-vómito disseminam-se pelas estações como cancros malignos hertzianos. Merda de década a tua, dizes para os teus botões. Davas o teu testículo esquerdo para te teres feito gente noutra geração qualquer.
Até que numa obscura rádio universitária algo te prende a atenção. Ouves uma voz a sussurrar baixinho frases como “hips like cinderella” – acompanhada apenas por baixo e bateria, tudo muito suave – quando de repente tudo explode no refrão: a voz começa a gritar enlouquecida – “TAME!!!” -, mandando ao tapete muitos vocalistas de hardcore; e a guitarra finalmente entra, distorcida, estridente, raivosa, fazendo os Jesus and Mary Chain parecerem os Simon & Garfunkel. E depois desta catarse quase demoníaca, tudo regressa à pacatez inicial. No final, o vocalista começa a fazer uns gemidos estranhos e uma voz feminina entra logo a seguir num arfar igualmente suspeito. E tudo rebenta outra vez num último espasmo de prazer. Não se trata simplesmente de uma canção sobre sexo. A própria canção é feita de notas musicais fornicando à bruta umas com as outras, intercalando com tranquilos cigarros e copulando outra vez selvaticamente. Nunca ouviste nada assim. No final, a locutora revela o que queres saber. A banda chama-se Pixies.
Não descansas enquanto não arranjas um disco destes gajos. Apareces na loja do Piranha, um tipo completamente chanfrado mas que tem a melhor colecção de discos de toda a Costa Leste. “Piranha, conheces os Pixies?” “Estás a gozar comigo? Os Pixies são a cena. Os Dinosaur Jr. bem que podem pedir já a sua extinção antecipada.” “Ouvi uma malha, acho que se chama «Tame»
e fiquei passado”. “Sim, é do cacete. É do novo disco, Doolittle, que nunca vendeu um chavo na merda deste país, nem com o rebuçado do «Here Comes Your Man». Em Inglaterra, andam todos malucos com os Pixies. Os beefs podem ser todos uns paneleirotes do caralho, com uma alimentação à base de chávenas de chá pelo cu acima, mas os cabrões têm bom gosto. Cá é só a merda do glam metal.”
***
Passaram agora dois anos. Conheces tudo sobre a banda, tens todos os seus discos, foste a dezenas de concertos, apaixonaste-te mil vezes pela Kim Deal. Foste tu próprio que propuseste ao teu chefe um especial sobre os Pixies. Ao princípio, ele torceu o nariz mas acabou por aceder. Agora, estás arrependido. Salários indonésios, deadlines americanos: o pulha quer a crítica do Doolittle na sua secretária até às sete da tarde.
Estás à frente do PC e não te sai nada. Mas sentes uma raiva que te espicaça a escrever. A tua revista pode ter uma pequena tiragem mas ainda assim é a única oportunidade que tens para provares aos teus conterrâneos que os Pixies existem mesmo e que o seu legado nos dois lados do Atlântico é do tamanho do piço afro-americano retratado em “Gigantic”. Tudo mudou nos últimos dois anos. Quando ligas a rádio ou a MTV há agora rock alternativo por todo o lado, um dominó empurrado pelo inesperado sucesso dos Nirvana. De dez em dez minutos, passa o hino “Smells Like Teen Spirit”, malha tremenda que mudou por completo as regras da indústria musical. És o fã número um da banda de Cobain mas não consegues deixar de sorrir ao notares as semelhanças com “Tame”: a transição entre versos suaves e refrões explosivos é copiada quase a papel-químico da canção dos Pixies. Os Nirvana foram o epicentro onde o terramoto rebentou mas todo o sismo tem origem debaixo da terra. O relato oficial, o que consta na certidão de nascimento, é o de que Cobain é o pai dos anos noventa. Mas se fizéssemos um teste de paternidade, analisando cuidadosamente o seu ADN musical, descobriríamos com quem a mãe dos nineties andou realmente enrolada.
Consegues finalmente escrever a frase de abertura do teu texto: “Há dois tipos de bandas: os que seguem as regras e os que inventam as novas regras.” Soa-te bem. Desde que o Chuck Berry apareceu, há sempre quem se apresse a apregoar que o rock morreu. Mas graças a meia dúzia de bandas visionárias – Beatles, Velvet Underground, Ramones, Joy Division, Smiths, Pixies – Fénix renasce sempre das cinzas. “Rock’n’roll will never die”.
Perguntas-te porque é que os Pixies nunca chegaram ao mainstream como os Nirvana. A primeira hipótese tem tanto de cínica como de verdadeira: Cobain é belo e carismático, com o seu rosto de Jesus Cristo atormentado de quem parece capaz de morrer em nosso nome; já Black Francis é um tipo normal e bolachudo, sem aquela aura intangível que os adolescentes procuram para os posters dos seus quartos. O mundo do rock é assim: um fútil mundo de aparências. À mulher de César não basta ser rocker. É preciso parecer rocker.
Segunda hipótese: os Pixies são demasiado arty para conseguirem sair do nicho de uma pequena elite universitária. O americano médio tem a cultura geral de um alho-francês. Quando em “Debaser” Francis fala de “chien andalusia” e de globos oculares cortados por uma lâmina, contam-se pelos dedos os que percebem as referências ao filme vanguardista de Buñuel.
Terceira hipótese: ao contrário da Geffen, que apostou muitas fichas na divulgação do Nevermind, os mentecaptos da Electra (a distribuidora dos Pixies na América) nunca investiram convenientemente na promoção dos Pixies.
Mas chega de filosofias baratas e concentra-te em Doolittle, se não queres que o teu chefe decore o seu gabinete com o teu lindo escalpe. É muito difícil elegeres o teu disco favorito dos Pixies mas se um soldado nazi te forçasse a escolher aquele que seria salvo de uma excursão a Auschwitz, é provável que agarrasses Doolittle com todas as tuas forças.
Senão, vejamos. Os últimos discos, Bossanova e Trompe le Monde, seriam logo descartados: por mais inventivos que sejam, são cada vez mais álbuns a solo de Black Francis, com os contributos da grande Kim Deal cada vez mais residuais. A voz e o carisma de Kim Deal, o elemento mais rock’n’roll da banda, sempre foram ingredientes fulcrais da marca Pixies. Mas rapidamente começaram a aparecer tensões entre Francis e Kim. Deal reivindicava mais espaço criativo, esperando que algumas das suas canções entrassem para o reportório dos Pixies. Mas Francis sempre resistiu. O facto de o primeiro sucesso da banda, “Gigantic”, ter sido escrito a meias pelos dois e cantado por Kim, aumentou a insegurança de Francis, com receio de ser ofuscado pela forte presença da baixista. Por outro lado, Kim era a mais boémia e indisciplinada, bebendo mais sozinha que os outros três juntos. De cada vez que chegava atrasada a um ensaio ou a um concerto, Francis ficava furioso, obsessivo na sua ética do trabalho. O mal-estar entre ambos foi grassando de disco para disco. Felizmente para o mundo que na gravação de Doolittle ainda há uma presença forte de Kim, que co-escreve “Silver” e cuja voz cheia e luminosa se espraia à vontade pelo álbum.
O primogénito Surfer Rosa – considerado por Cobain como o melhor disco dos anos oitenta – seria um forte candidato, o álbum mais espontâneo e selvagem dos Pixies, ou não se chamasse o produtor Steve Albini. Mas o que Surfer Rosa ganha em crueza e energia perde depois no jogo de contrastes. Em Doolittle, os métodos de produção mudam radicalmente com a entrada de Gil Norton. Norton é um fulano perfeccionista que fica semanas em pré-produção, planeando tudo ao milímetro. Desta forma, o que é polido é absolutamente polido e o que é selvagem é radicalmente selvagem. Os contrastes são assim acentuados e toda a grande arte vive da tensão entre forças opostas. Sempre foi essa a visão de Black Francis mas só Norton soube transportá-la inteiramente para disco. Quando no início de tudo Francis e o guitarrista Joey Santiago queriam recrutar um baixista para a banda, colocaram um anúncio nos classificados que rezava assim: “Alguém que goste dos Husker Du e dos Peter, Paul and Mary”. Nesta pequena frase está resumida toda a essência de Doolittle: a mistura de melodias pop certeiras e inteligentes com os acessos mais furiosos de ruído e violência.
É Francis que está na origem desta dualidade quase esquizofrénica. Por um lado, ele é o protótipo do “tipo normal”: cortês, delicado, calças de ganga e t-shirt como segunda pele, zero de encenação rock’n’roll. Mas no processo de criação todo o seu lado perverso (cuidadosamente reprimido no quotidiano) vem de um só jorro à tona. As letras de Doolittle são assim degeneradas e sórdidas, obcecadas com sexo e violência, misturando temas do Antigo Testamento, referências a filmes surrealistas e histórias de dealers porto-riquenhos meio cantadas em espanhol. Mas por mais doentias e amargas que sejam as canções, há sempre um sentido de humor a iluminá-las. Veja-se o caso da “Wave of Mutilation”, em que o tema pesado do suicídio é matizado pela forma divertida e onírica com que o descreve: o suicida despenhando o seu carro mar adentro e beijando sereias enquanto se afunda. Francis vê sempre as coisas de um ângulo bizarro, diferente de tudo o que já viste antes. Toda a grande arte é feita de lugares incomuns.
Por fim, há um terceiro ingrediente que torna Doolittle irresistível: a guitarra de Joey Santiago, o mais subvalorizado dos grandes guitarristas. Joey não tem nada de virtuoso mas cria texturas que mais ninguém faz, pela forma singular como ataca as cordas. Em “Dead” há um riff incrível… com apenas uma nota. O solo em “Hey” comove-te, tal é a sua simplicidade: nenhuma nota a mais, apenas a beleza no seu estado mais puro. Se o Miles Davis tocasse guitarra, tocaria assim.
Escreves finalmente o último parágrafo, dás uma revisão rápida ao texto e consegues entregá-lo no prazo combinado. Mas não estás contente. Relês o teu texto e ouves no teu walkman aquela música do outro mundo e não há qualquer equivalência entre os dois objectos. Cada vez mais te convences que é impossível traduzir em palavras o poder da música, que a crítica musical não passa de um exercício estéril e inútil. No fundo, não passas de um impostor: um tipo que é pago para explicar a um cego o que é isso do verde. Só te resta uma esperança: que os cegos que te leiam ouçam todos o disco que inventou o alternative rock.