“-Who are you? Who are you?”
“- Who are you, Kurt?”
“- I’m Kurt Cobain?”
Kurt Cobain tinha dois anos, era loirinho, bolachudo e parecia uma criança altamente feliz (tão feliz quanto qualquer criança nascida na década de 60 podia ser) quando disse esta frase registada num vídeo caseiro feito pelos seus pais e que aparece no filme Montage of Heck de Brett Morgen. Quem assistiu a este momento da criança a responder à pergunta sobre quem era provavelmente nunca imaginou que aquele miúdo se viria a tornar numa das mais emblemáticas figuras da cultura pop do século XX e o maior ícone juvenil de uma geração inteira. E muito menos adivinhariam que, chegado o dia 5 de Abril de 1994, com 27 anos, com uma filha recém-nascida e todo o sucesso do mundo, o homem se iria suicidar e deixar órfãos milhões de jovens que bebiam toda e qualquer palavra que lhe saísse da boca. Passaram-se já 25 anos da morte de Cobain e, desde então, não houve uma única figura pop a nível global que tenha gerado tanto consenso e tenha tido tanta influência em milhões de jovens como o líder dos Nirvana (a única que estará perto será Beyoncé, embora a sua influência se tenha construído ao longo das últimas duas décadas, enquanto Kurt se tornou um gigante cultural em pouco mais de três anos).
Desde que lançou Nevermind, e em particular o single “Smells Like Teen Spirit”, milhares de miúdos encontraram naquele homem loiro e incrivelmente bonito um salvador pessoal, um tipo irritado – como todos os miúdos são – e que em vez de cantar sobre os males da sociedade e os problemas políticos, cantava sobre os seus demónios pessoais, as coisas que o atormentavam, os seus falhanços para com os outros, um tipo que punha em canções o que as crianças que cresceram nos anos 90 sentiam: uma perda do norte, uma desorientação. E daí as ondas de choque que o seu suicídio provocou. Milhares de jovens que perderam, em apenas uma noite e um tiro de caçadeira, um herói e um companheiro. E desde então milhares de cantores tentaram calçar os ténis All Star de Cobain e liderarem uma geração, mas mais nenhum conseguiu. Talvez porque tenham tentado, enquanto Cobain foi apenas ele próprio: carismático, sincero e deprimido. Esta é a história de Kurt Cobain, e como o líder dos Nirvana foi o último ídolo global da juventude. E como passados 25 anos a juventude (pelo menos a ocidental) continua sem ter uma única voz que fale por todos.
Been a son – os anos da infância e da juventude
Even in his youth he was nothing
Kept his body clean going nowhere
Daddy was ashamed he was nothing
Smears the family name he was something
– “Even in is Youth”
Kurt Cobain nasceu a 20 de Fevereiro de 1967 em Aberdeen, Washington, nos EUA, em pleno auge do movimento Flower Power. Mas Aberdeen fica a centenas de quilómetros da solarenga São Francisco, na Califórnia, e os pais de Kurt estavam a anos luz de serem hippies. Eram uma típica família middle class, com a mãe, Wendy, a trabalhar como empregada num café e o pai, Donald, era mecânico de automóveis.
Quando tiveram o seu filho, a mãe de Kurt tinha 19 anos e o pai 21. Eram ainda crianças que podiam acalentar sonhos pessoais, mas como mostram sucessivas entrevistas a ambos, sentiram-se compelidos a casar devido ao filho, contentando-se com trabalhos que dessem para sustentar uma família. Este contentamento pode gerar inúmeros problemas no seio de uma família e as crianças muitas vezes percebem isso. Principalmente aquelas tão perspicazes como o mais jovem Cobain.
Ainda em criança, Kurt começou a desenhar os seus heróis favoritos – chamar “herói” ao Pato Donald se calhar é ir um bocado longe de mais, mas o que está escrito, escrito está – em folhas de papel. E a relação entre o músico e a arte gráfica continuou ao longo de anos, em folhas soltas, diários, cadernos de escola e telas e com temas crescentemente mais negros. A música entrou muito cedo na vida de Kurt. De acordo com familiares aos três anos já cantava, aos quatro tocava piano e gostava de ouvir os Ramones.
Era um miúdo adorável e adorado e apaixonado pela sua família. Mas tudo mudaria aos nove anos, quando Wendy e Donald decidiram separar-se. Um divórcio é quase sempre complicado para as crianças e Kurt não foi diferente. Se Wendy e Donald não se tivessem separado, talvez Kurt tivesse conhecido uma rapariga simpática, casado, tido três filhos e divorciado-se ao fim de 20 anos e algumas traições. Mas não, os pais do pequeno Cobain divorciaram-se e Kurt tornou-se rebelde e introvertido, com problemas de atitude em casa e na escola, desafiando abertamente qualquer figura de autoridade. Era um punk de espírito e um excluído com poucos amigos.
No início da adolescência iria viver durante uns tempos em casa dos pais de um amigo, depois de ser de novo expulso de casa do pai, uma figura que aprendeu a odiar, por sentir que nunca recebeu amor suficiente e que essa afectividade era mais dirigida ao seu novo irmão e aos dois enteados de uma relação anterior da madrasta do que a si. “Even in is Youth” é uma canção que escreveu sobre este sentimento de abandono paternal.
Na adolescência foi vítima de bullying por ser amigo de um miúdo gay, o que o fez odiar homofóbicos. Escreveu mesmo num diário: “Eu não sou gay, embora gostasse ser, apenas para irritar os homofóbicos”. Mais tarde, no interior de Incesticide viria inscrita esta mensagem: “If any of you in any way hate homosexuals, people of different color, or women, please do this one favor for us—leave us the fuck alone! Don’t come to our shows and don’t buy our records”. Era um desafio à sociedade conservador em que foi criado e uma mensagem bem clara: os Nirvana eram uma banda para os rejeitados, os excluídos. Mais tarde na sua vida, continuando a ser renegado por ambos os pais – ou a fazer com que estes o renegassem -, começou a viver em casas de amigos e debaixo das pontes (uma experiência que cantou em “Something in the Way”, a penúltima canção de Nevermind e “Lithium”), entrando em contacto pela primeira vez com drogas – leves de início – e a cultura punk de Washington. Foi durante a adolescência que viu os primeiros concertos e começou a levar mais a sério a sua música e a guitarra, tentando inserir-se nessa comunidade.
Mas a verdade é que Cobain nunca poderia ser um verdadeiro punk. Nenhum punk que se prezasse na altura podia admitir gostar de Beatles, essa banda que representa o establishment das enormes corporações musicais (porra, os gajos do punk são insuportáveis quando querem!) e foi isso que tornou Cobain tão inovador. Tanto gostava da rebeldia dos Black Fag, como do barulho dos Stooges ou as melodias harmoniosas de Lennon/McCartney. Ainda durante a adolescência, Cobain começou a namorar com a absolutamente banal Tracy Marander. O puto tímido e com acne encontrou alguém que o amava incondicionalmente e o aceitava como era: esquisito, reprimido e sem ganhar quase dinheiro nenhum. O casal partilhava uma casa e as contas eram pagas por Tracy, em troca Kurt deixava arte espalhada pela casa: textos aqui, quadros no chão e cassetes em caixas. Tracy deixava pequenas mensagens de amor ao seu namorado, como “Kurt, decidi esta manhã (outra vez) que te amo mil. Fico tão feliz que me ames também”. O jovem Cobain recebia finalmente o amor que sentia que não tinha recebido em criança. Mas como todos os amores de adolescência, também a relação entre Kurt e Marander teve de acabar. Já com Tracy, Kurt experimentou pela primeira vez dores as malfadadas dores de estômago que o iriam afectar para o resto da vida. As dores que o levaram a injectar-se com heroína para tentar fugir ao sofrimento. Mas a verdade é que provavelmente as dores de estômago se deviam ao uso contínuo desta droga.
Bleach, o início da maior banda do mundo
Durante a década de 80, Cobain tocou em várias bandas da cena underground de Seattle, incluindo os Fecal Matter. Por esta altura conheceu Krist Novoselic, um gigante (literalmente) que tocava baixo e que começou a ensaiar com Kurt por volta de 1986. Em 1987, conheceram Chad Channing que se tornou o baterista oficioso da banda. Cobain dedicou-se inteiramente à música e os três gravaram Bleach, o primeiro álbum dos Nirvana. O disco tinha pouco de pop – a canção “About a Girl” é talvez a única verdadeira canção pop do disco – e era mais centrado em canções pesadas e inspiradas por sonoridades de metal. Fosse apenas este disco que os Nirvana gravaram e não seriam nem a banda seminal dos anos 90 (até porque o disco saiu em 1989), nem Kurt Cobain algo que não um músico promissor e com uma adição a drogas. A digressão de Bleach atraiu pouco público e Cobain começou a ficar angustiado. Passava por imensas dores de estômago para ter pouco retorno? Não podia ser. Então siga dar um pontapé ao inútil do baterista (vá, não digamos inútil, mas é mais dinâmico assim) e arranjar um produtor novo e um baterista do caraças. “Sejam bem-vindos Dave Grohl e Butch Vig. Vamos gravar o melhor álbum das nossas vidas e mudar para sempre a música pop.” Grohl vinha da banda Scream e era um puto imberbe, de cabelo grande e cara ingénua. Mas bastaram dois minutos de audição para que Cobain e Novoselic percebessem que tinham ali o gajo perfeito para se sentar atrás da bateria dos Nirvana.
Os quatro (Cobain, Novoselic, Grohl e Vig) juntaram-se em Los Angeles e começaram a gravar incessantemente. Algumas canções já eram parte integrante dos espectáculos dos Nirvana (como “In Bloom” e “Breed”). Este período criativo coincidiu com o namoro entre Cobain e Tobi Vail, das Bikini Kill. Depois de ter estado numa relação com uma rapariga com o típico trabalho nine to five, a disruptiva Vail captou totalmente a atenção de Cobain que caiu de joelhos por esta musa da cultura “não quero saber”. Mas a relação não estava destinada a durar. Cobain queria uma relação de casal apaixonado, com filhos e Vail queria ficar para sempre livre de qualquer amarras e terminaram o seu relacionamento. Mas a verdade é que a Bikini Kill seria a inspiração de muitas das letras de Nevermind, incluindo a da canção mais importante da década de 90 (não exagero se disser dos últimos 30 anos, pois não? Então: a canção mais importante dos últimos 30 anos): “Smells Like Teen Spirit”.
A origem do título deste surgiu depois de Kathleen Hanna, das Bikini Kill, ter escrito na parede do apartamento do vocalista dos Nirvana: “O Kurt cheira a Teen Spirit” (“Kurt Smells Like Teen Spirit”). “Teen Spirit” era o nome do desodorizante de Vail, mas Kurt não sabia disso e pensou que era uma coisa revolucionária, como “Teen Age Riot” dos Sonic Youth e escreveu um hino à volta da expressão. Bem dito desodorizante!
Quando Nevermind explodiu nas tabelas e “Smells Like Teen Spirit” começou a passar incessantemente na MTV, os Nirvana tornaram-se na banda mais desejada do mundo. O sucesso foi tal que acabaram por destronar o disco Dangerous de Michael Jackson das tabelas. Nevermind vendeu milhões de cópias e os Nirvanda deram dezenas de concertos mundo fora.
Cobain tinha finalmente o sucesso que tanto desejou. As letras sobre os sentimentos de raiva adolescente encontraram os eu caminho para milhares de corações adolescentes . Drain You é provavelmente uma das canções de desamor mais fixes de sempre: “One baby to another said ‘I’m lucky to have met you” e lá pelo meio tudo fica confuso, com as guitarras a reverbrarem e um pato de borracha a soar psicadélico. Algo dentro do cérebro de Kurt Cobain era desregulado e isso traduziu-se em canções incríveis.
Mas com a fama, a adoração e o dinheiro vieram também os problemas. Kurt tornou-se mais dependente de drogas pesadas – heroína era a sua predilecta – e as dores no estômago intensificaram-se. Ao mesmo tempo, continuava a ficar desiludido com a fama que durante anos desejara. Em casa deixava a namorada, Courtney Love, das Hole, para ter de ir tocar em alguma parte da Europa.
À medida que o interesse por aquela personagem com um aspecto descuidado, mas ao mesmo tempo incrivelmente bonito – olhos azuis, cabelo loiro e comprido e olhar penetrante, bem como o seu lado intenso e perto do abismo tornavam-no irresistível – crescia, mais pressionado Kurt se sentia. Ainda por cima tinha em casa os dois grandes últimos amores da sua vida: Courtney Love e a pequena Frances Bean Cobain.
O uso público de drogas levou muitos a suspeitar que a relação entre Cobain e Love ia acabar como a de Sid Vicious e Nancy Spungen. Mas o casal sempre negou ser viciado em heroína, principalmente depois da pequena Frances nascer. Como se percebeu mais tarde, isto era mentira.
Os Nirvana começaram a gravar o sucessor do enorme sucesso que foi Nevermind. Muitos fãs temiam que a principal banda do movimento grunge se vendesse ao sucesso, mas aquilo que saiu foi um álbum negro, com grandes canções. Os temas acompanhavam a crescente depressão do seu compositor e quase todas tinham referências a um tema mais negro. “Rape Me” era uma canção anti-violação, “Serve the Servants” referia-se à forma como a família de Kurt tinha sido afectada pela fama de uma forma negativa, e “All Apologies” é o segundo mais sincero pedido de “desculpa” que Cobain conseguiu escrever. O maior chegou no dia 5 de Abril de 1994, faz hoje 25 anos, sob a forma de uma carta.
A despedida a Boddah. “I LOVE YOU, I LOVE YOU!”
A última interacção que Cobain teve foi com o seu amigo imaginário, Boddah. Dias antes tinha visto a filha pela última vez.
Entre Março e Abril, Cobain esteve duas vezes à porta da morte. A primeira em Roma, em Março de 1994. Love acordou ao lado do marido que tinha tido uma sobredose devido à mistura de champanhe e Rohypnol. Courtney referiu-se a esta como a primeira de três tentativas do marido. A segunda surgiu a 18 de Março. Kurt fechou-se numa casa-de-banho com uma arma. Foi a polícia que o dissuadiu.
No final de Março, o músico deu entrada numa clínica de reabilitação para se ver livre da sua adição a drogas. Durante uma tarde passou todo o tempo a falar com psicólogos sobre o seu problema com narcóticos e a depressão de que padecia. Ao mesmo tempo tinha a pequena Frances a seu lado. Seria a última vez que estaria com a filha.
Dias depois,a 8 de Abril, depois de fugir da clínica, um electricista encontrou o corpo morto de Cobain. Ao seu lado estava uma caçadeira e uma carta a Boddah. Na sua corrente sanguínea havia vestígios de grandes quantidades de heroína e diazepam. A carta de despedida é dilacerante. Basta lê-la abaixo, na sua íntegra e na versão original. Uma carta de amor a Frances e a Courtney: “Frances and Courtney, I’ll be at your alter. Please keep going Courtney, for Frances. For her life, which will be so much happier without me”.
Sobre a tua malfadada morte, pouco podemos acrescentar que não tenha já sido dito centenas de vezes por milhares de putos que se sentiram desnorteados, mesmo aqueles que nasceram depois do teu último adeus. Ao menos que a tua morte (e a dos teus amigos como o Chris e o Layne, entre tantos outros) tenha chamado a atenção para os monstros psicológicos que invadem a mente de milhões de pessoas e tornado a saúde mental num problema que merece toda a nossa atenção.
Resta apenas dizer isto: até sempre, Kurt, e obrigado. “Hey, hey, my, my, rock and roll will never die”.
“To Boddah Speaking from the tongue of an experienced simpleton who obviously would rather be an emasculated, infantile complain-ee. This note should be pretty easy to understand. All the warnings from the punk rock 101 courses over the years, since my first introduction to the, shall we say, ethics involved with independence and the embracement of your community has proven to be very true. I haven’t felt the excitement of listening to as well as creating music along with reading and writing for too many years now. I feel guity beyond words about these things. For example when we’re back stage and the lights go out and the manic roar of the crowds begins., it doesn’t affect me the way in which it did for Freddie Mercury, who seemed to love, relish in the the love and adoration from the crowd which is something I totally admire and envy. The fact is, I can’t fool you, any one of you. It simply isn’t fair to you or me. The worst crime I can think of would be to rip people off by faking it and pretending as if I’m having 100% fun. Sometimes I feel as if I should have a punch-in time clock before I walk out on stage. I’ve tried everything within my power to appreciate it (and I do,God, believe me I do, but it’s not enough). I appreciate the fact that I and we have affected and entertained a lot of people. It must be one of those narcissists who only appreciate things when they’re gone. I’m too sensitive. I need to be slightly numb in order to regain the enthusiasms I once had as a child. On our last 3 tours, I’ve had a much better appreciation for all the people I’ve known personally, and as fans of our music, but I still can’t get over the frustration, the guilt and empathy I have for everyone. There’s good in all of us and I think I simply love people too much, so much that it makes me feel too fucking sad. The sad little, sensitive, unappreciative, Pisces, Jesus man. Why don’t you just enjoy it? I don’t know! I have a goddess of a wife who sweats ambition and empathy and a daughter who reminds me too much of what i used to be, full of love and joy, kissing every person she meets because everyone is good and will do her no harm. And that terrifies me to the point to where I can barely function. I can’t stand the thought of Frances becoming the miserable, self-destructive, death rocker that I’ve become. I have it good, very good, and I’m grateful, but since the age of seven, I’ve become hateful towards all humans in general. Only because it seems so easy for people to get along that have empathy. Only because I love and feel sorry for people too much I guess. Thank you all from the pit of my burning, nauseous stomach for your letters and concern during the past years. I’m too much of an erratic, moody baby! I don’t have the passion anymore, and so remember, it’s better to burn out than to fade away. Peace, love, empathy. Kurt Cobain Frances and Courtney, I’ll be at your alter. Please keep going Courtney, for Frances. For her life, which will be so much happier without me. I LOVE YOU, I LOVE YOU!”