Heartattack And Vine é o álbum de transição de Tom Waits onde descobrimos que o bardo maior dos vagabundos, dos bêbados e dos corações partidos afinal tem um coração doce e quer assentar.
O final dos anos 70 e início dos anos 80 foi um período importante para a carreira de Tom Waits. Depois de seis álbuns editados em seis anos, e faltando apenas um para cumprir o contrato com a Asylum, a editora onde começou a carreira, a questão do que fazer a seguir começava a impor-se. A fórmula dos trabalhos anteriores, muito baseada na escola de Waits das atuações em bares e do Jazz, apesar de comprovadamente vencedora, começava a ficar gasta. É também por esta altura que é convidado por Francis Ford Coppola para ir para Los Angeles trabalhar na banda sonora do seu próximo filme, One From The Heart, aventura que lhe permitiu conhecer a mulher com quem viria a casar, também em 1980, Kathleen Brennan. Tornando-se não só uma parceria de vida, como também uma parceira artística, foi ela que o encorajou a produzir o seu próprio disco e a entrar na fase mais experimental da sua carreira que se iniciou com o disco seguinte, Swordfishtrombones, de 1983. É, portanto, com a estabilidade emocional que lhe faltava na juventude que Tom Waits se lança na nova década.
Heartattack and Vine, o seu sétimo álbum e o último com a chancela da Asylum, sai precisamente neste ambiente de transição em 1980. A fórmula a que já estávamos habituados mantém-se, Tom Waits é o bardo maior dos vagabundos, dos bêbados e dos corações partidos. Aliás, a primeira faixa, que dá também nome ao disco, é rápida a dar o mote: “what you say you meet me down on heartattack and vine”. É aqui, neste bairro imaginado de Hollywood, ainda mais escuro e pecaminoso que a versão original, que teremos a nossa reunião. Encostemo-nos a esta esquina e fiquemos a ver quem passa, com sorte alguém ainda nos paga uma bebida em troca de uma canção.
As canções, essas, são relativamente simples, com estruturas clássicas de Blues e com pedaços de letra que se repetem. “Heartattack and Vine”, “’Til The Money Runs Out” e “Mr. Siegel” são excelentes exemplos disso, todas canções com doses fortes de sexo, drogas e rock ‘n’ roll, motivos aos quais Tom Waits não seria estranho nenhum. Mas as verdadeiras pérolas do disco são as suas baladas, românticas e sofridas, “the tear-jerkers”, como lhes chamou a Rolling Stone em 1981. É por elas que voltamos.
“Saving All My Love For You” é o pedido de desculpas de um sacana que sabe que não as merece, mas que ainda assim tenta convencer a sua amada a aceitá-lo de volta. Com uma voz grave e roufenha, Tom Waits expõe o seu coração alcoolizado ao piano e, apesar da imagética violenta que habita em todas as suas canções, consegue ser extraordinariamente romântico e otimista (todo o meu amor é para ti, não ligues ao rumores que ouves sobre mim, eu prometo que não sou assim tão mau). “Jersey Girl” é outra destas belas janelas para o coração do hipster hobo. Dedicada à sua mulher (com quem permanece casado até hoje), esta canção sabe a Bruce Springsteen e a histórias de grandes amores de colarinho azul. Waits renega a má vida e os seus desamores, e entrega-se ao amor da sua “Jersey Girl”. “Shalalalas” a escorrer mel contrastam deliciosamente com a sua voz arranhada, ilustrando bem que o bad boy afinal tem um coração doce e quer assentar. Finalmente, “Ruby’s Arms” fecha o disco com chave de ouro. Talvez a mais bela das baladas do álbum, mais uma vez com o piano como estrela, é um uivo melancólico sobre dizer adeus. Nesta canção trágica e carregada de nostalgia, Waits sabe que não pode ter nada que o lembre da mulher que vai deixar (leva só um lenço roubado da corda onde secava). É de coração partido que constata que nunca mais a beijará, mas também não lhe poderá partir o coração. Ela ficará bem, nós que o ouvimos é que talvez não.
Não há dúvidas que Tom Waits é um dos nomes maiores da música americana. Contador de histórias por excelência, de malfeitorias e de paixões em partes iguais, em Heartattack and Vine Waits mostra mais uma vez a sua habilidade exímia para pintar quadros quase cinematográficos, habitados por personagens de moralidade dúbia, com a sua voz rouca e grave, bem regada a whisky. A década que este álbum inaugura viria mostrar que Waits tinha ainda muito a dizer e caminhos para desbravar, mas neste disco, que fecha o primeiro grande capítulo da sua carreira, fica claro o profundo carinho de Waits por estes recantos escuros da existência humana, por todos aqueles que se reúnem em Heartattack and Vine para um copo e dois dedos de conversa. A sua capacidade de ver beleza no sujo e no esquecido e o seu otimismo louco dão-nos esperança. Afinal, o diabo é apenas Deus quando está bêbado e até Deus terá de ficar sóbrio um dia.