O lado B do sonho americano, num disco que fecha talvez a triologia mais inspirada da carreira de Waits.
Quando Tom Waits libertou sobre o mundo o revolucionário Swordfishtrombones (1983), o disco que deixou para trás definitivamente o singer-songwriter para nos dar o Tom Waits caótico que conhecemos hoje, algo de muito profundo acabava de mudar. Seguiu-se-lhe o igualmente excelente Rain Dogs (1985), que solidificou com mais segurança esse caminho. E é um capítulo que, de certa forma, se completa com o disco seguinte, este Franks Wild Years, de 1987.
Desta santíssima trindade, o último disco tende a ser algo esquecido e a sofrer, da parte da crítica, uma desvalorização face aos seus dois antecessores. O autor destas linhas discorda, e passará a explicar porquê.
Mas primeiro vamos às possíveis razões para a falta de “cachet” deste disco. Primeiro, há que assumir que os dois anteriores trabalhos são autênticos monumentos sagrados no evangelho de Waits, pelo que seria sempre difícil ser o álbum seguinte. Em segundo lugar, há elementos conceptuais estranhos, como o facto de o nome do disco ser o nome de uma música que não está no disco, e ser uma espécie de banda sonora de uma peça de teatro que praticamente ninguém viu.
Vamos por partes.
“Frank’s Wild Years”, a música, faz parte de Swordfishtrombones, e é uma pequena vinheta falada – ao som de um sintetizador piano-bar – que conta a história de um tipo que tinha uma vida pacata numa terrinha da Califórnia e um dia se passou da pinha: chegou a casa, regou-a com gasolina e incendiou-a, ficando a vê-la arder, estacionado dentro do carro do outro lado da rua. Adeus mulher, adeus odiado chiuaua, adeus vidinha aborrecida de terra pequena. Tudo fica em aberto: o que o levou a fazer isso? E para onde foi ele a seguir?
Na altura, era apenas uma história entre mil que Waits contava nos seus discos, mas esta, por alguma razão, não se foi embora, como o próprio explicou, numa entrevista: “Essa canção foi como um bolinho da sorte. Depois de a escrever, pensei, o que será feito deste tipo? Toda a gente conhece alguém assim, pessoas que não vês há uma data de tempo. O que será feito dele?”
Os anos selvagens de Frank eram um conceito tão poderoso, tão cheio de possibilidades, que o músico decidiu mergulhar na sua vida e, enquanto gravava Rain Dogs, escreveu uma peça de teatro com a sua mulher, Kathleen Brennan, sobre este tal Frank e o que seria feito dele. A peça teve vários problemas e esteve em cena apenas três meses, em Chicago, sendo abandonada a ideia de a levar de seguida para Nova Iorque.
Waits, que representava o papel de Frank, ficou então em Chicago com a sua banda e, ao longo de 15 dias, gravaram as músicas da peça e compuseram algumas novas, que faziam ali sentido. O resultado é Franks Wild Years, o disco, agora sem o apóstrofe a separar “Frank” do “s”.
O fio condutor é a história de Frank depois de deixar a Califórnia, em busca do sonho americano. Um grande peixe num pequeno lago, que procurou águas mais amplas para mostrar todo o seu valor, apenas para verificar que, afinal, não era assim tão especial, e fracassar.
Musicalmente, o disco pertence claramente ao universo dos dois trabalhos anteriores: Waits em roda livre, a fervilhar de imaginação e a não ter medo de experimentar, a trocar as canções mais “redondinhas” por rumbas urbanas e valsas quebradas, com música cigana e mariachi pelo meio. Talvez por ter sido base para uma peça de teatro, há um universo e uma aura teatrais que perpassa por todo o disco, embora isso também estivesse presente em discos anteriores, diga-se.
A surpresa por este magnífico disco não ser mais conhecido e aplaudido prende-se com o facto de este conter várias músicas obrigatórias para qualquer conhecedor da carreira de Tom Waits. O destaque talvez vá, curiosamente, para temas que não entraram na peça de teatro e foram depois criadas no estúdio. É o caso de grandes clássicos como a demência de “Telephone Call From Istambul”, o lamento sofrido de “Cold Cold Ground”, a polka de “I’ll Be Gone” (que poderia facilmente ter encontrado casa confortável em Rain Dogs) e o blues moderno de “Way Down in the Hole”.
Tudo temas excelentes, mas há muito mais a que dar atenção. Há o arranque com “Hang on to St. Cristopher”, que o próprio Waits caracterizou como “uma espécie de James Brown mutante”; há a declaração de intenções de Frank em duas versões de “Straight to the Top”; há a sexualidade soul (raramente explorada por Waits) em “Temptation”; o lamento bonito de “More Than Rain”; a fabulosa e contida balada “Yesterday is Here”; e a ternura irresistível de “Innocent When you Dream”, também em duas versões diferentes.
Frank acaba por fracassar na sua demanda por sucesso e adoração. Waits, neste seu inquérito psicológico para entender este tipo, é sempre empático, dando-nos ao mesmo tempo o lado ridículo de Frank mas fazendo-nos, de certa forma, torcer por ele.
E se Frank falhou, Tom acertou, mais uma vez.
Mesmo sem ver a peça, Franks Wild Years aguenta-se sem problema algum enquanto disco e por mérito próprio, sendo um trabalho coeso e que é elevado por muitas excelentes canções, que se tornaram clássicos.
Acabamos como começámos: pode não ser um disco tão iconoclasta e mediático como Swordfishtrombones ou Rain Dogs, mas é um membro de pleno direito dessa triologia e não fica em nada atrás de tão prestigiada companhia.