Disseram-lhe que bastava mais ou menos. Respondeu que não, não, não…
No início do milénio, Norah Jones teve um sucesso inesperado com Come Way With Me (2002), voltando a pôr o smooth jazz no mapa. Foram muitos os artistas que apanharam então o comboio, de Michael Bublé a Jamie Cullum, de Katie Melua à própria Amy Winehouse. O seu primeiro álbum, Frank (2003), foi bem recebido, aclamando-se o seu neo-jazz-neo-soul-com-garagem-para-o-hip-hop. Mas nessa altura Winehouse era apenas mais uma. Ainda não era a Amy…
Tudo mudaria em 2006 com o maravilhoso Back in Black, um clássico instantâneo que a transformou na diva da sua geração. Deitando fora os acordes complicados de jazz e a voz demasiado polida do primeiro disco, optou por uma abordagem mais retro e visceral, namorando com a soul, o doo-wop e as girls groups dos dourados anos 60. O seu visual acompanhou o processo: penteado-colmeia à Ronettes, eyeliner à Cleópatra e corpo tatuado à “caixodré”. A própria voz mudou também, agora mais grave e granulada, uma judia inglesa magricelas soando a uma negra roliça do Alabama.
Salaam Remi continuou como produtor mas agora com Mark Ronson ao lado. A primeira intuição certeira do miúdo Ronson foi convidar a banda de soul revivalista The Dap-Kings, gravando tudo na intimidade de um pequeno apartamento no Brooklyn, só com velhinhas máquinas analógicas. Sharon Jones não gostou do roubo.
Era mesmo esse som da velha guarda que Amy tinha na cabeça. Lembrava-lhe as canções que escolhia na jukebox do pub do quarteirão, enquanto jogava bilhar – e aspirava vodka – com o seu namorado Blake. E agora que o velhaco lhe partira o coração tinha sangue fresquinho para escrever a sua obra-prima.
Moderando os excessos nostálgicos do álbum, Amy é contemporânea nas letras, embebendo-as numa bazófia de rua tão provocadora como espirituosa. As suas palavras são cinematográficas: quase que a vemos chorando no chão da cozinha, aninhada numa garrafa vazia.
A sua voz, possante e de fraseado inventivo, comove-nos pela sua subtileza e verdade. Amy nunca cai no exibicionismo histriónico de muitas das suas herdeiras (que Adele nos perdoe a franqueza). Quando no final de “Back in Black” repete, quase sussurrante, a palavra “black”, acreditamos no desespero de cada sílaba. Da mesma maneira, quando canta “Love is a Losing Game”, com aquela entoação triste mas resignada de quem se rende à verdade do mundo, alguma coisa em nós estremece.
Uma voz assim, tão trágica e expressiva, aparece raramente: Billie Holiday nos anos 30, Janis Joplin nos ’60, Amy no novo milénio. Infelizmente, partilha com as suas ilustres antecessoras a mesma volúpia da auto-destruição.
É aqui que reside a perversidade de toda esta história: Amy não teria um décimo da sua celebridade se fosse prudente e… como havemos de dizer… viva. Todos nós, que amamos a rebeldia e imprevisibilidade do rock’n’roll, somos também um pouco cúmplices. Claro que não fomos nós que bebemos até à morte naquela noite estúpida. E sabemos que ter a sua intimidade permanentemente devassada por asquerosos tablóides não foi o bálsamo que ela mais precisava. Mas o nosso mórbido voyeurismo, e o glamour que procuramos na tragédia alheia, põe-nos também manchas nas mãos. Fica a culpa e um disco imortal.