A Inglaterra, ou genericamente o Reino Unido, é pátria da melhor música moderna da História. Houve períodos em que os EUA conseguiram equilibrar as contas e até, brevemente, tomar a liderança, mas sem fazer a diferença no panorama geral. Como tal, para quem gosta das várias encarnações do rock, do pop e do indie, o que se passa em Inglaterra é importante. Por isso, caro leitor, abra bem os olhos: vou falar-lhe do que mais importante se está a passar na terra que Tony Blair enganou e Cameron acabou de destruir.
Os Sleaford Mods são um duo de Nothingham e andam nisto há mais de 10 anos. Este Divide and exit é, aliás, o seu sexto disco. Os quatro primeiros foram generosamente ignorados por uma sociedade empenhada em elevar coisas como os Kooks, os Kasabian ou os Libertines a heróis de uma geração, não querendo olhar para coisas mais feias e malcheirosas que se estavam a passar, por mais significativas que fossem. As coisas começaram a mudar com Austerity Dogs, disco do ano passado que conseguiu chamar a atenção da comunidade e tornar-se, graças às letras, numa espécie de testemunho musical dos tempos conturbados que vivemos, política e economicamente.
E o que podemos dizer, um ano depois, é que nada de relevante mudou. E Divide and exit ataca a situação, com uma energia renovada de sentir que, agora, as ruas do Reino Unido estão a ouvir. Ou não, e que se foda a taça.
A alma deste duo é Jason Williamson, funcionário público durante o dia e poeta e “cantor” nas horas vagas. Ou quando vai à casa de banho no emprego, período durante o qual, confessa, escreve muitas letras (“já não me deixam escrever no telemóvel quando trabalho”, desabafa). A segunda metade é Andrew Fearn, o homem da parte instrumental. Esta, na maioria dos casos não é mais que uma bateria e um baixo tensos e, de vez em quando, um teclado manhoso ou uma guitarra sumida.
Por cima desta cama urgente, vigorosa, repetitiva e “in your face”, está o que realmente interessa. A voz furiosa, indignada, acusatória, viva e ritmada de Williamson. Este não canta, nem rappa: cospe as palavras numa torrente discursiva implacável, que preencherá páginas e páginas de texto por cada música. Tudo entregue num extraordinariamente carismático sotaque tão britânico que faria parecer o Príncipe Carlos um emigrante das Tolucas infiltrado em Londres. Com uma grande diferença: os Sleaford Mods são a voz da rua, “da classe trabalhadora e mais abaixo”. Das 14 faixas do disco, só duas não não têm o carimbo de “Explicit lyrics”.
Os alvos? Muitos. E todos eles merecem tudo o que os Mods lhes querem fazer.
Tony Blair como vendilhão do sonho de uma ‘Cool Britania’ que morreu debaixo de guerra, cocaína e da diluição do que significava ser de Esquerda; David Cameron, o coveiro incompetente de Inglaterra, o homem que tem como resposta para tudo o corte de impostos à City e a privatização de tudo o que mexa; Thatcher, claro, que nasceu na mesma terriola que os Sleaford Mods; o bullshit do showbiz; os funcionários formatados que vivem para trabalhar “das nove ao cubículo” e para se estoirarem de drogas sintéticas ao fim de semana; da cultura do dinheiro, do sucesso e do tudo o que puderes para chegar primeiro. Entre os alvos estão também os pseudo-rebeldes dos anos 90, os que compraram uma carrinha mesmo que não tenham filhos para não estragar a linha, os esquerdistas que se conformaram: ” To disagree on social media networks is to kill the counterculture”, é um dos mantras. Sim, os Mods fazem questão de nos lembrar que um like numa frase queriducha serve apenas para amenizar as nossas consciências, enquanto pela nossa inacção permitimos que a matança e a injustiça continue a fazer vítimas na vida real.
É esta gente, toda esta gente, que Williamson quer, sobretudo, desmascarar. Mas não só. Quer atacá-los, insultá-los, ridicularizá-los (e tem muita, muita piada). “Chumbawamba weren’t political, they were just crap” é, já agora, uma frase que faria valer todo o disco.
É uma música que, desde o primeiro segundo, não faz prisioneiros. Não nos dá um segundo para descansar. Não nos dá sequer tempo para pensar se gostamos do que se está a passar nos nossos ouvidos. Ouçam duas ou três músicas: o que sentirem ao fim delas será suficiente para tomarem a decisão, se estão do lado deles ou contra eles. Não há outra via.
Que música tão comprometida, tão furiosa, tão vital e tão perto do osso consiga ser, ao mesmo tempo, agradável de ouvir, essa é a grande surpresa.
Divide and Exit é o lado negro das ruas britânicas: é Trainspotting; é punk praticamente sem guitarras; é Frank Gallagher de Shameless; é o fato de treino da Umbro dos The Streets; é o rufia da claque de futebol; é o dedo furioso apontado aos responsáveis pela morte de um sonho de um país mais justo e mais fraterno.
Um disco e uma banda são tanto mais fundamentais num dado momento quanto consigam captar o estado das coisas nesse mesmo momento. Na Europa de 2014, a Europa da retoma, do regresso aos mercados, da pobreza, da austeridade e da guerra às nossas portas, nada é tão artisticamente relevante como estes dois rapazes.
Os Sleaford Mods são o que de mais fundamental e mais significativo se está a passar no panorama musical britânico.
Ponto final.
Estão avisados.