Na sua digressão de despedida, Roger Waters trouxe a Lisboa o fatalismo de quem vai fazer 80 anos e vive na iminência de uma guerra nuclear. Suportado pelas décadas de carreira nos Pink Floyd e a solo, preparou um portento cénico e sónico com porcos e ovelhas flutuantes. Despede-se dos palcos como monstro político de palco, com o Ocidente como alvo (sem saber se Portugal pertence à NATO), e com canções de amor universal.
Roger Waters faz contas aos anos que lhe restam. Custa ler isto, mas… “vamos todos morrer, não é?”, admite o próprio. Depois de mais de duas horas de concerto a acelerar de ponta a ponta do palco, montado em cruz no centro no Altice Arena, berrando e agitando dedos e punhos no ar, cheio de vida, um dos fundadores dos Pink Floyd desacelera e pega na sua Martin para tocar “Two Suns in the Sunset”, uma canção sobre a morte (e a vida) durante um apocalipse nuclear. “Foi a última canção do último disco em que escrevi para Pink Floyd”, disse, em referência a The Final Cut (1983). Não parece que Waters, no alto dos seus quase 80 anos, esteja à beira da morte, mas o primeiro concerto em Lisboa de This is Not a Drill, digressão da primeira despedida de Waters, foi um misto de raiva pela guerra e nostalgia de fim de vida – uma melancolia de quem se agarra às fotografias de crianças durante um advento nuclear. E a culpa é dos Estados Unidos e da NATO, diz.
O arranque da digressão europeia de This is Not a Drill foi o que sabemos ser Roger Waters ao vivo: um portento cénico e sónico com participação de animais insuflados, carregados de mensagens políticas, sem metáforas ou meios termos. Como sempre, para o bem e para o mal, Waters é um monstro político – e avisou-o no concerto desta sexta-feira, o nono em Lisboa. Pelas 21:30, trinta minutos depois o agendado, leu-se nos ecrãs: “Senhoras e senhoras, tomem os vossos lugares. O espetáculo vai começar. Por favor, por consideração ao próximo, desliguem os telemóveis. E se fores uma daquelas pessoas que diz ‘adoro Pink Floyd mas não suporto as posições políticas do Roger’, o melhor que fazes é ires-te foder e seguir para o bar.”
O tema da Ucrânia não se evitou. O concerto arrancou com “Comfortably Numb”, que Waters e companhia tocaram escondidos do público, tapados por uma parede escura, apenas suportada por um vídeo de uma cidade devastada pela guerra, com prédios destruídos e pessoas a cambalear para a sua miséria – a fazer lembrar Kiev em ruínas. “Hello, is there anybody in there”, ouviu-se a primeira cantarolada em uníssono. No fim, a parede escura sobe e segue-se a tríade “Happiest Days of our Lives” e “Another Brick In The Wall” (I e II), mais canções do seminal The Wall, disco conceptual de Pink Floyd, abertamente político, uma ópera rock sobre um personagem criado por Waters. Anti-fascistas, anti-guerra, anti-várias coisas. “Hey teacher, leave them kids alone!”, outro berro em uníssono, desta vez mais poderoso, mais arrepiante.
O homem e a Ucrânia
Waters diz o que tem a dizer na cara – mesmo que não se goste. Em “The Powers That Be”, canção a solo do disco Radio K.A.O.S., apareceram vários inocentes por crimes de ódio, como George Floyd, que morreu às mãos de polícias, ou Marielle Franco, antiga vereadora do Rio de Janeiro, crítica de Bolsonaro, assassinada. “Causa da morte: ser preto.” O alvo muda em “The Bravery of Being Out of Range”, outra canção a solo: as caras de vários presidentes norte-americanos aparecem ao lado das palavras “criminoso de guerra”. Primeiro, Ronald Reagan por “matar 30 mil inocentes do Guatemala” (em referência à proximidade que tinha com o regime do então ditador guatemalteco, Efrain Rios Montt), passando por George W. Bush, Trump e até Obama por “ normalizar uso de drones”. Biden? “Ainda só agora começou…”
Aos olhos de Rogers, o belicismo e inveja do mundo é culpa do imperialismo norte-americano. Caro leitor, não sei qual é a sua posição em relação à invasão da Rússia na Ucrânia, mas eu devo fazer uma declaração de interesses. Para mim, a Ucrânia é um país soberano e qualquer ónus da guerra deve estar no agressor – a Rússia. Não interessa se a Rússia invadiu a Ucrânia por se sentir “legitimamente provocada” pela NATO, como argumentou Waters nas Nações Unidas. Não se invade soberania alheia, ponto final. No concerto, Waters apela à “paz na Ucrânia” e pede à NATO para “parar de alimentar a guerra” e escolher a via diplomática. Ora, como a crise dos Sudetas em 1938 nos mostrou, negociar com tiranos expansionistas não resolve grande coisa: nada impediu Hitler de continuar a anexar países, nem mesmo quando Chamberlain e Daladier entregaram aquela fração da então Checoslováquia à Alemanha Nazi em troca de paz.
Há quem não consiga superar as posições de Waters em relação à guerra. Há quem tenha vendido o bilhete – e percebo. “Eu nem sei qual é a vossa situação aqui… Portugal está sequer na NATO? Espero que não! O meu país faz parte e eu não gosto nada disso!”, disse, com reações mistas no público. Eu, Alexandre Malhado, sou daqueles sortudos cínicos que consegue dividir o artista da arte: para mim, Waters é como um tio comunista abastado que gosta muito de dar opiniões, de relógio de luxo ao pulso, comprados com os bilhetes vendidos para o Golden Circle. Não gostamos das opiniões, mas gostamos dele. E eu gosto dele, muito.
O amor pela humanidade
Se os momentos políticos eram viscerais, ao estilo de “Punk” Floyd, reproduzindo o que ouvi de um adolescente ao pai, os momentos mais bonitos foram os de amor e comunhão. Ao piano em “The Bar”, tema escrito durante a pandemia (e ainda por editar), Waters conta a história de uma mulher que leva uma sem-abrigo para um bar, um lugar onde “toda a gente a pode ajudar”. “É um lugar onde podes pedir uma bebida, encontrar amigos ou conhecer estranhos. Trocar opiniões com estranhos e amigos, sem medo ou favor. Conversar é a coisa mais importante que podemos fazer neste momento”, disse Waters antes de começar a canção, sem referir a guerra da Ucrânia. Uma coisa é certa: a letra é de união, um slow tempo comovente, com bastantes influências gospel. “Does everybody in the bar feel shame? / Lord knows I do/ I guess we all feel pretty much the same / Kind of worn out by this crazy f*cking zoo.”
O último segmento da primeira parte foi dedicado a Syd Barrett (sem qualquer menção a David Gilmour nas imagens que passavam no evento, apenas dos quatro membros fundadores). Após a trip induzida em “Have a Cigar”, ao ritmo da guitarra de Jonathan Wilson, conhecido cantautor e produtor norte-americano, responsável por trabalhos de Angel Olsen, Father John Misty e Bonnie “Prince” Billy, e dos solos de David Kilminster, guitarrista de longa data de Waters, ambidestro e especialista em solos de Pink Floyd, com bends menos sentidos do que os de Gilmour (mas mais complexos), Roger Waters fez um dos momentos da noite: “Wish You Were Here”. Imaginem um Altice Arena lotado a cantar a mesma canção, guiado por uma história sobre Syd Barrett e a fundação dos Pink Floyd. “Éramos garotos em Cambridge (…) Gene Vincent ia tocar, assim como os Rolling Stones. A voltar para casa nessa noite, fizemos uma promessa: que quando fossemos para Londres começávamos uma banda. O resto é história.” Conhecendo o trágico declínio de Barrett, é difícil não ficar emocionado.
Claro que a homenagem a Syd Barrett era iminente. Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-VII, V), do mítico Wish You Were Here, acompanhada por imagens de Barrett nos ecrãs, foi outro momento arrepiante.
Uma hora e meia adentro, voltávamos à política. Uma ovelha gigante flutua Altice Arena. Ao som do psicadélico “Sheep”, do disco Animals, inspirado nas distopias literárias de George Orwell, Waters aponta o dedo à cultura das redes sociais – seja a condenar guerra na Ucrânia, seja pela luta aos direito reprodutivo, com supremacistas brancos a elogiar quando o Supremo Tribunal norte-americano revogou o Roe vs Wade, que tornava o aborto um direito. Ou seja, depois de apelar à importância do diálogo, é altura de chamar de acéfalos da propaganda a quem tem uma opinião diferente — mas em grande estilo.
Era tempo de pausa. Aproveitei para ir buscar uma cerveja sem álcool (já não bebo há um mês) e fazer um xixi. “Mijem rápido, que já não tenho vinte anos”, disse um senhor visivelmente aflito, já nos seus setentas. Pela fila, podíamos auscultar as idades representadas no concerto: mais boomers e zoomers do que millenials. Ou não fosse isto dad rock clássico, o Altice Arena estava inundado de fãs de longa data, com t-shirts da tour de 2002, que passou no então Pavilhão Atlântico, ou de 2006 no Rock in Rio; mas também os novos convertidos ao rock, que descobriram as guitarras de Gilmour pela primeira vez.
23:00, a banda voltou. Vestido de nazi das SS, o Führer Waters apareceu para “Run Like Hell”. Acabaria por aparecer outro animal insuflável: um porco ladrão. “Rouba aos pobres / Dá aos ricos” e “Fodam-se os pobres”, no outro lado, lê-se na barriga do animal, que sobrevoava o recinto. De seguida, outro dos momentos da noite: “Money”. De rolex no pulso, Jonathan Wilson cantava e dedilhando o conhecido riff. No saxofone, o canadiano Seamus Blake, sediado em Nova Iorque, onde se especializou em Charles Mingus – mas que espalha magia em Pink Floyd.
No fim, o que imperou foi a mensagem principal de Waters: o amor pela humanidade, na sua diversidade em “Us & Them” e “Any Colour You Like”, logo seguido de “Brain Damage” e “Eclipse” (todo o lado B de Dark Side of the Moon). Por fim, já depois de um shot de mezcal (será o segredo da sua longevidade?) voltou a tocar a “The Bar”, mas num tom mais suave, dedicando-a ao irmão falecido este ano. Fotografias de família, do pai, mãe, irmão, de si próprio em criança, apareciam nos ecrãs, em jeito de retrospetiva de vida. É o aviso de que a vida é para ser aproveitada. Afinal, a vida não é um simulacro. This is not a drill, despede-se Waters.
Quase como se fossem os Arcade Fire, a banda apresentou-se e despediu-se com “Outside the Wall”, já fora do palco. E assim terminou. Espero ainda voltar a ver Roger Waters, um dos últimos grandes rebeldes. Para o bem e para o mal.
Setlist
- Comfortably Numb
- The Happiest Days of Our Lives
- Another Brick in the Wall, Part 2
- Another Brick in the Wall, Part 3
- The Powers That Be
- The Bravery of Being Out of Range
- The Bar
- Have a Cigar
- Wish You Were Here
- Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-VII, V)
- Sheep
Segunda parte
- In the Flesh
- Run Like Hell
- Déjà Vu
- Déjà Vu (Reprise)
- Is This the Life We Really Want?
- Money
- Us and Them
- Any Colour You Like
- Brain Damage
- Eclipse
- Two Suns in the Sunset
- The Bar (Reprise)
- Outside the Wall
Fotografias cedidas pela organização.